Hamlet - Shakespeare

The Play Scene from Hamlet (1842), Daniel Marclise

 

Há uma tensão no ar. A antiga conquista do rei Hamlet, agora morto, ao anexar parte da Noruega, tem sido reivindicada por Fortimbrás, príncipe da Noruega e filho do rei morto pelas mãos de Hamlet pai. Essa tensão no céu político de certo modo circunscreve aquela outra, palaciana, tensionada pela relação triangular dos que sobem à cena após o antigo rei virar fantasma. Em Shakespeare, o cenário precede as personagens, assim como as determinantes teatrais precedem as do verso. À sombra do pai morto, Hamlet, o filho, vê as novas núpcias da mãe viúva, Gertrudes, menos como um desrespeito à memória do falecido, e mais como um escárnio de sua natureza fraca e luxuriosa. Frailty, thy name is woman! A menos de um mês do luto, ela faz novo homem, Cláudio, irmão do antigo rei morto, deitar em sua cama e sentar no trono da Dinamarca. Contra essa satisfação incestuosa, o príncipe Hamlet, ao saber da presença fantasmática de seu pai na esplanada do castelo, faz-se ali presente para lhe ouvir o chamado da vingança. A voz do fantasma realiza a verdade de que a filosofia não fora capaz. Ela é a voz que convoca à realidade. Dessa verdade, a peça tem seu início, desencadeando a loucura de Hamlet em reivindicar a honra do pai. Mas está mesmo louco o príncipe? A honra do pai, ele acusa, fora perdida em razão... da fraqueza dos desejos da mãe? Tenhamos calma. Nada é o que parece. O trono está sujo, e mesmo que se escondam as mãos, "leio em vosso olhar uma espécie de confissão", diz a loucura. É preciso saber olhar até onde vai o desejo, toda essa falta de razão do que se impõe more than natural. O leitor, ao menos, deve reconhecer, afinal, que há método na loucura. Tenhamos calma, pois a obra-prima de Shakespeare prima por exigir leitura atenta, more than natural.

 

A paciência é a arte de ter razão. "Aguarda, espada, um golpe mais terrível". Ter razão é o que dá ao ato seu valor. Aquilo que parece more than natural, ou mesmo unnatural, no entanto, diz respeito sobretudo a nós, humanos. Somos seres de cultura, mas o valor da cultura tem raizes naturais. Tudo depende de como as coisas são vistas, fala Hamlet. "As coisas, em si mesmas, não são nem boas nem más". É a lei da natureza, a lei do que ocorre comumente. Quase ouvimos aqui os lemas da filosofia estoica, que embalam os dilemas de Hamlet. Para o príncipe, a verdade, que se fez ouvir na aparição, está diante dos olhos. Como então observarmos seu destino? O olhar melancólico de Hamlet vê com desprezo o mundo, deseja mesmo que a matéria pudesse se desfazer em orvalho, ou fumaça. To be or not to be? Esse mundo humano, não raro, lhe aparece como prisão, e a Fortuna, ou destino, não passa de uma meretriz. "Não parece, é": I know not 'seems', confessa Hamlet a mãe, ao vê-la tão feliz. O teatro da época não era lugar para mulheres em cena. Com a oportuna chegada dos atores da cidade, a alma poética do príncipe, então, esvoaça, verseja o real pela ilusão da metáfora artística, bebe da loucura em palavras para ocultar a real intenção de seus atos. Estará louco o princípe? O poeta, em Shakespeare, é sempre condicionado pelo drama. "A isca da falsidade apanha a carpa da verdade", dizia Polônio: by indirections find directions out. A arte há, portanto, de imitar a vida, até que a vida imite a arte. Só que nenhuma arte tem valor maior do que a de permitir, para si mesmo, uma aparição, uma representação. A metáfora do pensamento, desde os gregos, é em grande parte teatral.

 

No meio da peça havia uma peça, há uma peça no meio da peça. Depois de Hamlet ser observado às escondidas pelo rei e Polônio, estratégia para conhecer as reais motivações de sua loucura, não sendo as dores de amor de todo confirmadas, não de todo claras, voltam-se, rei e súdito, ao último dos estratagemas antes da decisão de enviar Hamlet para a Inglaterra: temeroso do perigo que se esconde na loucura não observada, o rei consente que Polônio às escondidas observe Hamlet e sua mãe, após a peça, a fim de ouvi-lo confessar a ela a causa de sua loucura. Mal sabe que estará ele mesmo, o rei, sendo observado às escondidas por Hamlet e Horácio, a ver se o texto e o drama descortinam as paixões do regicida. A arte imita a vida, e nem tudo se pode ver às escuras. A imitação do assassinato do rei, de tão real, desvela no olhar do tio regida o ódio pela vergonha de si. Em seus aposentos, confessa seu crime e sua desgraça, aquela de se haver ainda no leito do morto. Sem se arrepender não há perdão. A sós, Hamlet o observa rezar sua confissão, mas evita a tentação de se vingar, para não tornar o mal em bem ao criminoso. "Aguarda, espada, um golpe mais terrível". Há método na loucura, e o de Hamlet parece estar em esperar o momento oportuno.

 

Mas o príncipe comete um ato sem pensar. Crendo haver chegado o momento, quando ouve alguém à espreita, enquanto ele confessa à sua mãe suas razões, servindo-a de espelho dos pecados inconfessos, Hamlet pula fora de sua sensatez e desembainha a espada. Estaria mesmo louco o príncipe? Menos afiada que sua língua, sua espada mata Polônio às escuras. Não se pode ver bem escondido. Hamlet deseja que a mãe veja o pecado que a obscurece, mas ela não consegue enxergar o fantasma do pai que, ali nos aposentos da rainha, se dá a ver a Hamlet, para relembrá-lo de sua missão. Só que o príncipe ainda não viu tudo. Nesse mal dos eyes without feelings, mostra à mãe sua desonra. Ela não ousa tornar os olhos para sua própria alma, porque a alma, feita de hábito, é marcada por certos habits devil que devoram todo o senso do olhar, encerrando a alma numa ação repetida feita uma força da natureza, a constranger todos, também Hamlet, ao desfecho inevitável. To be or not to be? Tudo agora está às claras, e será preciso o príncipe se ausentar, para que, nesta ausência suposta, sua razão afiada retome o controle dos seus lemas e dilemas, fazendo ao final explodir o autor da bomba que lhe preparam, ou antes, fazendo com que caia na cova aquele mesmo que lhe abre a fenda. Estar ou não estar na cova? That is the question!

 

O retorno de Laertes, enfurecido com a morte do pai, é o último degrau em que se inscreve a tensão da cena criada por Shakespeare: aquele da gente do povo, os que, mesmo no interior do palácio, não sofreriam com as amarras que fazem o destino dos nobres ser esta força que os constrange à maldição de "ter vindo ao mundo para endireitá-lo" ("eles [nobres] são escravos de seu nascimento", dizia Polônio a Ofélia), Este triângulo tensional, do qual Ofélia sofre as constrições, dispõe o irmão Laertes, revoltado, à balbúrdia do lado de fora do palácio, insuflando o povo à reverência que chega a ameaçar os donos do poder. A passagem é emblemática: "o populacho lhe chama lorde, e tal como se o mundo fosse recomeçar, sem que mais lembrem tradições, esquecidos os costumes -- sustentáculos firmes das palavras -- grita: elejamos o rei! Que seja Laertes!". Para evitar um levante popular, cabe ao rei eximir-se da culpa pela morte de Polônio, exilando o sobrinho assassino e consentindo que o duelo exigido por Laertes venha tingido pelo veneno em sua espada. Hamlet, que escapa do exílio pelo estratagema das cartas, que no fim o livra da morte condenando a ela seus amigos, cai em luta com Laertes na cova aberta para o corpo de Ofélia, a lutarem por alguma honra que fosse possível ser defendida ainda. Mas ali, na simbólica e mais interessante cena do cemitério, as honras todas não passam de pó, de nada. Desde a cova de Ofélia, o destino de ambos os jovens, nobre e súdito, se escreve. Será preciso retornarem ao palácio, para que o duelo encerre a peça e a honra do rei assassino, morto pelo próprio veneno de suas tramas escusas e vergonhosas.

 

E nisto se vê que o veneno mais letal é o da vergonha, causa da loucura que move os pés e as mãos para o unnatural, para a desrazão dos atos. O caso da casta e triste Ofélia é, quanto a isso, o mais significativo. Ao saber da morte do pai, a loucura domina suas palavras, similar a Hamlet em seu papel de louco, mas ali não era arte nem artifício, era sua vida casta que agora parecia desonra e vergonha, ao crer, em seus poucos anos de vida, na bondade e no amor. Talvez sua loucura viesse de não encontrar saída para o que a vida, cruel e triste, lhe impunha, tão desejosa de poder desfrutar alguma parcela da alegria de amar e ser amada como lhe prometiam as juras das noites. Ela, como súdita, feito povo, por certo discordaria da sentença do pai: afinal, nem a gente do povo é assim livre dos habits devil como se pensa. "Sabemos, senhor, o que somos, mas não o que viremos a ser", diz Ofélia ao rei. Diante do rei, Ofélia foi mais real. Madness would not err. Nem mesmo Hamlet, o príncipe que ela imaginou padecer de um amor igual ao dela por ele, pôde ao final, apesar da nobreza de sua motivação -- sedenta por vingar a honra do pai mas sem coragem para insuflar o povo, que o amava, contra o tio regicida, como Laertes facilmente fizera -- se igualar à Ofélia, na loucura de perder o seu (pai, mas também o seu amor). A loucura não haveria de errar, Shakespeare nos repete. Se o que da loucura sobra é a verdade, a verdade é essa vergonha desenhada pelo demoníaco hábito humano, que constrange nossa liberdade a repetir os mesmos erros de nossos pais, como uma lei que parece tão natural.

 

A salvação, sendo possível, parece estar na inspiração do exemplo. "Fazei-vos de virtuosa, se não o fordes", dizia Hamlet à mãe. A única saída contra o hábito é se acostumar a fazer diferente. Para tanto, há de ser preciso modelos de vida de honra que nos inspirem. O maior de todos, com a exceção da triste Ofélia e sua vida marcada pela obediência e simplicidade, deveria ser Hamlet, quem à primeira vista é o herói da obra-prima de Shakespeare. Mas o bardo inglês, mais dramaturgo que poeta, sugeriu um modelo em Fortimbrás, o príncipe que em sua honra revela a Hamlet toda a coragem que lhe faltava de caminhar "para o túmulo tal como se fossem para o leito". Não por acaso, é o próprio Fortimbrás quem assume o poder ao final, depois do desfecho sanguinário orquestrado pelo veneno que é a desonra da alma armada na hipocrisia. Hypokrites era, no teatro grego, o nome da máscara que os atores usavam em suas personagens. Hamlet, em seu papel de louco, obteve a vingança, até mesmo a honra pela voz do amigo poeta Horácio, que lhe louva os feitos após a morte. Só não foi capaz de obter o poder e o amor, aquilo de que mais precisava. Talvez não devamos dizer que não amou. Se a morte do pai transmuta o amor por sua mãe em ódio e loucura, é com a morte de Ofélia que sua alma sente o peso da vergonha, da própria coragem que lhe parecia faltar, aquela mesma que ele havia louvado no príncipe Fortimbrás. Sua revolta com a fraqueza das mulheres no fundo era uma revolta contra si, descortinada em volteios e rodeios de pensamento e de filosofia, porém fraco em agir. A triste Ofélia, transmutada em espelho da alma triste de Hamlet, pôs-lhe às claras por sua resolução de se entregar às águas do rio em desespero e loucura. Ele que agiu pouco no papel de louco, precisou descer à cova para ver sua própria hiporcrisia. "As mãos que trabalham pouco são mais sensíveis", dissera Hamlet, influenciado pela sabedoria dos coveiros. No duelo com Laertes, Hamlet se descobre capaz de agir, e então capaz de amar. Suas mãos, sensíveis ao que se mostra demasiadamente humano, puderam enfim confessar, em seu ato final: "foi a loucura... O veneno me domina... o resto é silêncio".

 

Três frases, uma descoberta. O jovem Hamlet, dominado pela loucura da vingança, não pôde ver claramente o veneno que lhe corroía a bondade e o amor. Seu excesso de discurso e de pensamento adoecia a alma envenenada pelo destino de repetir com palavras os atos de ódio e revolta. Laertes e Fortimbrás foram-lhe dois jovens que tanto lhe espelharam a vergonha. Mas há algo em Ofélia que inspirou Shakespeare a encenar alguma salvação possível ao seu herói. Se podemos ver em Hamlet um exemplo e uma inspiração, é preciso ouvi-lo mais uma vez, atentamente: "conhecermos bem uma pessoa é conhecermos a nós mesmos". That is the question! The rest is silence.


Tradução de Carlos Alberto Nunes

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