Shakespeare - Vênus e Adônis





O FURIOSO MAR DE ALÍPIO
Por IVO BARROSO


O leitor desta exuberante transposição brasileira do poema Vênus & Adônis, de William Shakespeare, feita pela mestria tradutória de Alípio Correia de Franca Neto, terá um duplo motivo para apreciar o livro: uma abrangente e esclarecedora apresentação, em que são perquiridos não só os significados mas ainda as circunstâncias em que o poema foi escrito, e em seguida um texto poético em que a proficiência excepcional do tradutor enfrenta a quase impossibilidade de transladar em decassílabos brasileiros esses versos intencionalmente sintéticos, já por si compactados pelo caráter monossilábico do idioma inglês.

Inspirado nas Metamorfoses, de Ovídio, o poema narra a tentativa de sedução amorosa exercida pela deusa Vênus, que procura por todos os meios, principalmente pela convicção retórica, possuir carnalmente (ou fazer-se possuir) pelo belo jovem Adônis, cujo único interesse na vida é a caçada. Mas tal foi o ardor das frases, encontradas pelo Poeta para expressar os argumentos da deusa, que o livro adquiriu, em sua época, a reputação de “erótico”, de um verdadeiro “manual de cantadas femininas”, em que há passagens de um “realismo” que ainda nos soa atual em sua descrição das manobras amorosas que antecedem o ato não consumado. Alcançando inúmeras edições em período relativamente curto, o livro ajudou decerto a minorar as necessidades pecuniárias por que passava o autor nesse período.

Sabe-se que Shakespeare compôs o poema numa época de recesso dos teatros ingleses, obrigados a fechar as portas para impedir a disseminação da peste bubônica que grassava em Londres, e ameaçava a bem dizer toda a Europa. Sem os proventos que auferia com suas representações teatrais, o Bardo, seguindo um costume da época, procura então um sponsor, um mecenas que lhe possa auxiliar materialmente; para tanto, escreve longos poemas que dedica ao Conde de Southampton, então notório protetor das artes. Ao que tudo indica, o tributo ao nobre surtiu efeito, pois em seguida Shakespeare lhe dedica outro longo poema, A Violação de Lucrécia, com palavras já afetuosas e assinando-se Your lordship´s in all duty, que pode ser entendido como alguém “para todo e qualquer serviço”. Com esses dois livros, e mais alguns sonetos que começam a circular poucos anos depois, Shakespeare conquista um lugar de respeitabilidade entre os poetas ingleses de seu tempo, algo que ainda não havia conseguido com sua produção teatral.

Esquematicamente, Vênus e Adônis é um poema de 1194 versos dispostos em 199 sextilhas (estrofes de seis versos), compostas por uma quadra acrescida de um dístico. As rimas são alternadas nas quadras (1º verso com o 3º, 2º verso com o 4º) e em parelha (5º com o 6º) nos dísticos. Usando tais arcabouços tão constritos, o Bardo no entanto consegue milagres de síntese vocabular, jogos de palavras, aliterações recorrentes, além de um ritmo dialogal que dá ao leitor a sensação de presenciar as investidas da deusa e os recuos estratégicos do moço inseduzível. Shakespeare abusa dos adjetivos geminados, com que, pelo acasalamento de duas qualidades, reforça o significado do termo, acrescentando-lhe novas assonâncias associativas. E seu vocabulário concreto (substantivos) é dos mais ricos da língua inglesa.

Pois foi neste furioso mar de genialidades que Alípio Correia de Franca Neto teve a coragem de navegar sem recorrer a estratagemas facilitadores. Seria lícito usar, na tradução, versos alexandrinos (de 12 sílabas), mas ele se manteve na camisa-de-força do decassílabo (de dez), para acompanhar mais de perto o original. O texto inglês que antecede cada estrofe permitirá ao leitor versado em línguas apreciar os milagres de transposição conseguidos por Alípio, sem prejuízo do sentido e utilizando quase as mesmas palavras do original. Admirável é sua capacidade de sintetizar o verso sem deixar de obter um correspondente efeito poético em português. E lá onde o Vate enfileira duas ou três aliterações, Alípio, num passe de mágica, comparece com sua equivalência sonora em português. Mas são tecnicalidades dispensáveis para quem simplesmente aprecia um texto sem entrar nos pormenores de sua feitura. Sem cogitar de que se trata de uma das obras-primas da poesia internacional, o leitor desfrutará este poema como alguém que lê uma história romântica ou assiste a um filme de amor.



Prefácio escrito para o livro “Vênus e Adônis”, de William Shakespeare, com tradução, introdução e notas de Alípio Correia de Franca Neto, editado pela Leya, 2013.


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