O sol na cabeça, Giovani Martins

 



Esses dias de inverno amazônico, entremeado por viroses e mudanças, talvez tenha sido bastante oportuno para ter-ler O sol na cabeça, um dos mais festejados exemplares da força da atual literatura brasileira. Com um estilo próprio, mesclando as regras tradicionais da gramática com o embaralho das normas feito pela ginga e gíria cariocas, Giovani Martins joga qualquer expectativa pela vala, nos surpreendendo em cada esquina de suas descrição, nos becos dos sentimentos que caracterizam o caos de viver e sobreviver no Rio de Janeiro, sendo pobre, sendo negro, tendo esperança. É quase como se as palavras se escrevessem ali na ginga mesma de seu ato heroico de dizer o preterido, o desprezado e esquecido, para nos lembrar a todo instante que a vida é bem mais do que aquilo que geralmente se vê na TV.

Os recusados e preteridos compõem os contos de O sol na cabeça com a ginga sobrevivente e corajosa dos que não calam sua oportunidade de viver, a todo instante negada pela lógica mesquinha dos preconceitos de classe média, dos prejuízos da rotina sufocante de pertencer aos miseráveis, aos desprezíveis. Mas ali, na gíria e no jogo de Martins, os marginalizados têm sua cota de humanidade, são restituídos na complexidade de ser e de existir que muitos tentam lhes recusar. E nessa ginga, de maneira sensível e honesta, reconhecemos o quanto se faz desprezível e miserável achar-se alguém pelas roupas que veste, pelo carro que dirige. O lado humano da história de ser e existir está junto a quem não se deixa apegar pelo pouco, que é nada.

É, pois, muito o que Giovani Martins nos têm a mostrar, a dizer. A força de suas palavras, de suas constatações, embaralha as normas e as regras de uma sociedade adoecida pela ganância de ter mais do que precisa, de precisar mais do que pode ter. Numa prosa por vezes asfixiante e vertiginosa, é quase a falta de ar do sobrevivente que se torna a experiência estética de ler. E lendo, somos menos mesquinhos, menos alienados. Pude, de modo vertiginoso, voltar ao Rio, relembrar as travessuras de criança, as mazelas da vida adulta. Eis um belo mas angustiante retorno, sobretudo porque, como se lê em Martins, o Rio não vive sem o medo, sem as drogas.

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