Budapeste - Chico Buarque

 



Esse foi o primeiro livro do Chico que me pus a conhecer. Li dois capítulos, mas parei, não consegui continuar à época. Precisei dar uma 'outra volta no parafuso' até poder apreciar tudo que a sua prosa oferece. Após essa volta, e lendo toda sua produção, retomei o caminho de partida. Esses movimentos não podiam ser mais oportunos. Encontrei em Budapeste a razão de ser grande o Chico escritor, exatamente pelo tipo de experiência estética que ele evoca e convoca em seu leitor. O caminho de volta foi quase o segredo, eu diria, para não me perder na viagem só de ida de José Costa para Budapeste.


No fundo, José Costa teve na vida apenas passagem de ida. A primeira vez que ele se perde em Budapeste, algo ali se perde de sua rotina, o que, a bem da verdade, significa dizer que algo até então encoberto se descobre. A vida anônima como escritor, o lugar de adereço que lhe cabe na rotina de casal, ser um pai em quase tudo ausente, tudo isso pesa demais depois da curta aventura de se perder em Budapeste. É em função de voltar para lá que ele vive, as próximas férias seriam a oportunidade perfeita, mas avisar a mulher na última hora não foi a melhor escolha. Ela o abandona no aeroporto, segue para Londres, enquanto ele retorna a Budapeste. Algo ali tinha sido definitivamente perdido para os dois, algo então abandonado, com passagem só de ida, sem perspectiva de voltar.


Mas ele volta, depois de haver-se com Kriska, seu novo amor pela cidade e pela língua que tanto o havia encantado à primeira vista. Ele volta, com a expectativa de retomar seu lugar na família e na vida anônima de escritor. Ledo engano. A volta lhe provoca um deslocamento insuportável de viver. Ele não quer mais ser adereço, já não lhe cabe mais o anonimato. A fama obtida pelo alemão, para quem ele servira de escritor anônimo, torna impossível o silêncio. Era preciso dizer, sobretudo para Vanda, então sua mulher e profunda admiradora do alemão, que fora ele o escritor daquele livro. Era preciso confessar, mas ele abandona novamente toda aquela rotina de abandono, com passagem só de ida para Budapeste.


Mas ter abandonado Kriska a primeira vez não lhe permite obter qualquer sorriso de boas-vindas. Forçando sua recepção à casa da professora húngara, vê-se ali sob o desprezo dela e do filho, até que aos poucos ela volte a admirá-lo, até que José Costa se descubra poeta na língua magiar, escrevendo outro best-seller no anonimato. Uma descoberta como essa, contudo, não evita que ele deixe para trás a casa de Kriska, que seja denunciado como imigrante ilegal ao dar entrada num hotel, a ser obrigado, por isso, a voltar para o Brasil mais descoberto e abandonado do que o deixara. A vida anônima, quase marginal que ele retoma é, por fim, sacudida por uma última ligação, um pedido para que retorne a Budapeste, em função de sua qualidade reconhecida como poeta e escritor. Como Kriska poderia abandoná-lo outra vez?


As idas e vindas de José Costa, a bem da verdade, são movimentos de abandono e de descaso, que aos poucos vão se tornando em poética e paixão pela língua húngara, na força do reconhecimento de si apesar do anonimato, na certeza do amor como o ato espontâneo e silencioso de receber o outro de volta. Ao nos darmos conta dos movimentos metaliterários com que Chico Buarque nos convoca a uma passagem só de ida para o seu Budapeste, escrevendo sobre as idas e vindas de um escritor que se descobre desde o seu lugar anônimo, e que descobre, por fim, que sua vida é escrita anonimamente ali mesmo enquanto estamos lendo este (seu) livro, agora famoso, agora premiado, sentimos a vertigem do que está mesmo no centro da experiência literária: a de que nossa pátria, nossa língua, nossa casa é a palavra -- e nada além disso.


Editora Cia das letras

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