Tardes com Platão 4ª etapa: Fédon

 



Memorial dos encontros

  • [08.03] Introdução à leitura do diálogo
57a-58a

Introdução à leitura do diálogo. A condenação de Sócrates, sua filosofia e a proposta de escrita em Platão. Os elementos do acontecimento do discurso como fundamento da composição platônica. A cena inicial do diálogo. Equécrates indaga Fédon se esteve pessoalmente no último dia da vida de Sócrates, ou se ele soube do que ocorreu só de ouvir falar. Tanto a pergunta quanto a resposta são marcadas pelo termo autós, que em grego indica o caso oblíquo dos pronomes pessoais, e que ressoam a temática que será analisada pelo diálogo: a do si mesmo do ser humano. A postura de Equécrates, ao querer saber o que foi dito e como as coisas aconteceram, revela-se dignamente filosófica. Fédon relaciona o dia da condenação com o da execução. A distância entre um fato e outro é a deixa para que se reconstitua os traços do mito fundador da pólis ateniense: o de Teseu.



  • [15.03] O mito de Teseu e a condenação de Sócrates
58a-59b

Fédon descreve a situação que fez estender o prazo para a execução da condenação de Sócrates, devido ao adiamento do retorno do barco de Teseu que sai todo ano de Atenas até Delos, enquanto instrumento de purificação para a cidade. Relações entre o mito de Teseu, o labirinto e a questão discursiva: discurso e exercício de exame de si mesmo. Fédon, narrador, expõe seu testemunho em face da personagem principal de sua narrativa. A felicidade de Sócrates e a estranheza dos sentimentos de Fédon colocam o narrador em sintonia com a qualidade do que irá narrar, fundamento último da narração. O desespero de Apolodoro, porém, não era comparável ao de nenhum dos demais.


  • [22.03] Início da narrativa: as dores de Sócrates
59b-60e

Fédon expõe a lista dos companheiros de Sócrates que estiveram presentes àquele dia fatídico, além de indicar as ausências tanto de Platão quanto de Aristipo. Começando sua narrativa desde o início, Fédon procura esclarecer os detalhes da cena em que seus companheiros encontraram Sócrates, após regressar o navio de Delos e o carcereiro libertar Sócrates das algemas. Ali estava Xantipa e o filho menor, tenta sensibilizar o marido para os seus momentos finais, mas Sócrates pede para Críton retirá-la. Sua opinião, logo que sai a mulher, é a que reflete sobre prazer e dor como um ciclo, provavelmente seria em Esopo admitida como um Uroboro (a que come o próprio rabo), caso o fabulista tivesse prestado atenção ao páthos desse modo. Cebes se apresenta, então, questionando Sócrates sobre a informação que obteve do poeta Eveno, que dissera ter Sócrates se dedicado na prisão à poesia, versificando Esopo e hinos a Apolo. Sócrates, concorda com a notícia, referindo-se a certos sonhos que lhe moveram a pôr-se a fazer alguma das músicas a fim de não fugir daquela obrigação.



  • [29.03] Poesia, filosofia e interpretação dos sonhos
60e-61b

A notícia que Sócrates nos traz de sua dedicação à poesia decorre da experiência recorrente de sonhos que lhe exigiam "fazer música e realizá-la". Sócrates até então pensou realizá-lo, por se dedicar à filosofia, a maior das músicas (arte das Musas). Mas seu contexto de execução o fez questionar se deveria realizar a poesia popular. Essa sua dedicação à poesia pode ser entendida, portanto, como certa obediência à purificação de si antes da morte, obediência a si mesmo como alguém que deve ser um 'músico', e por fim como experiência que aproxima o lógos filosófico da criação poética, dita mýthos. A presença de experiências oníricas na cultura grega e em Platão. A arte platônica como uma realização poética da filosofia.



  • [05.04] A polêmica definição da filosofia como preparação para a morte
61b-62e

O recado que Sócrates pede a Cebes para enviar a Eveno causa estranheza nos seu interlocutores: se Eveno for sábio, se ele considera-se alguém no caminho da sabedoria, um filósofo, então deve seguir o caminho de Sócrates, ao se aproximar da morte, apenas com a ressalva de não vir a tirar a própria vida. A interdição do suicídio aparece em contexto mítico do qual decorrem certas doutrinas pitagóricas, e do que se ouve falar, o que pode ser discursivamente resumido aparece na condição do ser humano como posses dos deuses. A analogia com a escravidão, aqui, antes fortalece a dúvida de Cebes: se o filósofo é aquele posto no caminho da morte, como ele poderá ser considerado um sábio, já que os deuses, guias e cuidadores da nossa vida, são nossos proprietários? Sócrates precisará demonstrar porque o filósofo não seria, antes, um insensato, ao buscar aquilo que nem os deuses põem como melhor orientação para a vida.



  • [12.04] É preciso acreditar no bem da morte
63a-64c

A contradição apontada por Cebes, que causa certa admiração da parte de Sócrates, é ratificada por Símias, que aponta para o filósofo de justificar por que razão se deseja a morte, sendo os deuses bons e sábios. Na expectativa de poder ter mais eficácia na sua defesa com os amigos do que teve frente aos juízes, anuncia sua crença de que há algo após a morte, e muito melhor para os bons do que para os maus. Essa crença surpreende Símias, que condena Sócrates por querer deixar a vida e os seus amigos sem partilhar com eles tão elevada esperança. Antes, Críton rapidamente se apresenta para mencionar a contraindicação feita pelo carcereiro, sobre o veneno precisar ser em altas doses se houver conversas acaloradas antes de tomá-lo. Sócrates despreza a sugestão, como também desprezará a opinião da maioria, levantada comicamente por Símias, que tenderia a concordar com Sócrates que o filósofo vive para morrer, e não mereceria outra coisa. É preciso, então, abandonar a maioria e examinar em comum o que de fato o verdadeiro filósofo quer dizer com o seu exercício para a morte.




  • [19.04] O que significa morrer?
64c-65c

É preciso, desde logo, esclarecer o que significa morrer para os filósofos verdadeiros: é a separação do corpo e da alma, considerados em si mesmos. Desta distinção, o filósofo, diferindo-se da maioria dos humanos, despreza como indignos de valor os prazeres somáticos, indo em busca daqueles prazeres afeitos à alma. A psykhé, em si mesma, se realiza no pensamento, e em vista dessa atividade o corpo e seus sentidos antes atrapalham que auxiliam a obtenção do saber sobre a melhor forma de agir na vida.



  • [26.04] A convicção do filósofo
65c-67b

Se é no pensamento que a psykhé alcança a realização de si mesma, seus objetos (o justo, o bom, e toda a essência de cada coisa) só podem ser alcançados pela reflexão a partir do lógos. No exercício do lógos em si mesmo pode a alma refletir de maneira pura, ou seja, sem mistura com as demandas somáticas. O saber sobre as melhores ações (phrónesis) precisa, desse modo, ser obtido a partir da busca e do exame das coisas, um saber sobre o que elas são. Nesse momento, Sócrates expõe a longa opinião (dóxa) dos ditos filósofos autênticos: a crença de que, sendo desejosos da verdade enquanto qualidade do saber das coisas e das ações, só pode alcançá-la no pensamento, para sair da impossibilidade sugerida pelo morrer entendido fisicamente (ou é impossível alcançar em vida ou só o alcançaremos após a morte), deve-se entender o morrer almejado pelo exercício filosófico como a progressiva condução do psíquico ao afastamento do somático, reduzindo este ao necessário. Só assim é possível obter a sabedoria.


  • [03.05] O que só as vésperas da morte podem ensinar
67b-68b

Após a exposição de sua convicção, Sócrates aponta para o seu lugar, o de estar às vésperas da morte, como a condição paradigmática do verdadeiro filósofo e das coisas com que ele se ocupa. Tal condição é efeito de um exercício constante de purificação (kátharsis) a que o filósofo se dedica, e que nada mais significa do que a progressiva separação e distanciamento da alma em relação ao corpo. Sendo isso mesmo aquilo que se convencionou chamar morte, justifica-se, ao mesmo tempo, a prática filosófica como um exercício para a morte (psíquica) e a falta de temor do filósofo diante da morte (fisiológica). E visto que muitos correm a desejar seguir ao Hades por haverem perdido algum ente querido e com a esperança de reencontrá-los, o filósofo, mais ainda, deve se colocar, através de sua disposição de viver pelo desejo (erós) de saber bem agir (phrónesis), sem temer porque espera encontrar no Hades aquilo que sempre desejou: a realização de sua alma por ela mesma.



  • [10.05] O mais virtuoso é saber
68b-69e

 A revolta diante da morte, então, não pode ser atitude de um philosóphos, mas de um philosómatos, que geralmente é alguém que se compraz com riquezas, com fama e com os apetites somáticos. Nesse caso, aquilo que se diz do virtuoso deveria ser dito acerca do filósofo, pois a maioria chama de coragem ou de temperança a mera troca entre medos ou prazeres uns pelos outros. Para a maioria, portanto, não há separação entre virtudes e vícios, eles só podem observá-las misturadas. Cabe ao filósofo, aquele que faz as distinções e separações e, por isso mesmo, capaz de dizer o que seja a verdadeira areté, cabe a ele ser o verdadeiro virtuoso, pois a verdadeira moeda de troca das qualidades humanas é a phrónesis. Como dizem os Mistérios, pela crença após a morte de haver separação entre puros e misturados, será o filósofo aquele iniciado cuja expectativa é a de conviver com a verdade em sua pureza após a morte.


  • [17.05] A dúvida sobre o que a alma é
70a-71b

Cebes, ainda não totalmente convencido, apresenta a opinião comum que duvida poder a alma sobreviver em algum lugar após a morte. Sócrates, então, retoma a ação de mitologizar, a fim de tentar com isso se dirigir aos muitos não totalmente convencidos. Essa amplitude de público leva Sócrates a considerar agora o discurso da tradição, que afirma ser no Hades o lugar do qual as almas vem e para onde elas vão. A verdade dessa notícia depende de uma argumentação capaz de destacar seu lógos, sua estrutura. Esta será dada pela relação que se constata entre todos os opostos existentes, que nos expõem dois processos de gênesis, os dois caminhos de origem de um polo a partir do outro. Ainda que não se tenha nomes para designar todos esses processos, isso não invalida sua constatação.



  • [24.05] A reflexão sobre os ciclos do real
71b-72a

Na caracterização a partir dos dois processos correlativos de geração entre os opostos, interessa para Sócrates pensar como a vida vem da morte. Isso porque um dos processos é para nós visível, perceptível, por ser relativo ao físico (ao corpo, então ausente desse argumento): sabemos que da vida vem a morte porque vemos um corpo se transformar em cadáver. Mas se, tal como entre o sono e a vigília, os dois processos são estruturalmente adequados para falar sobre as coisas, é preciso deduzirmos haver o processo complementar pelo qual da morte vem a vida. O que garante, contudo, que a psykhé seja indicada como habitando o Hades, na conclusão de Sócrates, terá de ser, por certo, a condição imaterial, suprassensível e invisível da alma, que a torna capaz de habitar o lugar oposto ao processo das gerações, o lugar da phýsis. Se for assim, então o corpo, ausente do discurso de Sócrates neste momento, está situado no âmbito da phýsis tal como a alma está situada no âmbito do Hades. Mas o argumento dos ciclos não é capaz de demonstrar isso sem levar em conta o discurso sobre a crença do filósofo, que antecede a pergunta de Cebes.



  • [31.05] Nova questão surge: a reminiscência
72b-73a

As indicações finais de Sócrates sobre a argumentação da gênese a partir dos contrários é entendida como não injusta, ou seja, como logicamente adequada. Ao que parece, sua intenção é compreendê-la também como ontologicamente adequada. Para isso, é fundamental entender que a gênese não poderia ser concebida como uma linha reta de um oposto ao outro, mas como um ciclo, visto que não haveria se tornar se o processo findasse num dos pólos, tornando tudo misturado, com o mesmo esquema e mesmo estado. Pensar a gênese como linha reta seria, no fim das contas, tornar o mito de Endimião verdade para tudo o que existe, um caos completo como dizia Anaxágoras. Ao final, duas conclusões são viáveis - Sócrates expõe uma, respondendo a dúvida de Cebes sobre o lugar da alma após a morte. A segunda conclusão é apontada por Cebes, ao resgatar um outro discurso de Sócrates, de tonalidade epistemológica, que demonstrava ser o aprendizado reminiscência, o que mostraria que a alma é imortal.


  • [07.06] A reminiscência é lembrança de quê?
73a-75a

Após inserir a conclusão sobre a imortalidade da alma a partir do discurso de Sócrates sobre a anamnese, Cebes precisa provar a Símias o que recordou, visto que o amigo não parece se lembrar, e ele descreve o processo de questionamento com que Sócrates conduz ao relembrar. Suspeitando de que Símias não esteja ainda persuadido, Sócrates intervém, procurando realizar com o amigo este mesmo processo, a fim de fazê-lo rememorar. Para isso, Sócrates demonstra que reminiscência é lembrar-se do que se tem conhecimento por meio do que se conhece. Os dois movimentos servem para caracterizar as indicações de Sócrates ao considerar a origem de nosso conhecimento da ideia de igualdade em si.




  • [14.06] Reminiscência e imortalidade
75a-76a

Se é pela percepção que tomamos contato com objetos que nos evocam outros objetos, e se estes outros objetos precisam ser conhecidos para serem reconhecidos na evocação, então quando reconhecemos a noção de igualdade em objetos que se mostram iguais entre si é porque devemos tê-la conhecido antes. E se os objetos que se mostram iguais entre si jamais são plenamente iguais, a noção da igualdade plena ou em si mesma deve ter sido conhecida antes de termos percepções. Se a percepção é possível quando nascemos, ou seja, quando a alma encarna, então o conhecimento da igualdade plena, bem como das noções que possuem natureza similar, uma natureza plena ou em si mesma, deve ser necessariamente anterior à encarnação. Sendo assim, e sendo a reminiscência o relembrar-se do que se conheceu antes, de duas uma: ou encarnamos conhecendo as noções plenas e jamais as esquecemos, ou as esquecemos e delas lembramos por aprendizado, que não seria senão anamnese.



  • [21.06] As garantias para a imortalidade da alma
76b-77d

Dadas apenas duas opções, Sócrates espera que Símias seja capaz de decidir, mas ele titubeia. É preciso provocá-lo, propondo sua concordância quanto a duas afirmações que, juntas, determinam o critério de distinção entre os humanos: aquele que sabe deve ser capaz de dar as razões do que sabe, e por não ser todo homem capaz de oferecer razões sobre as noções em si (autós), é preciso assumir, portanto, que esquecemos das essências (ousía) ao encarnarmos. Estas, no entanto, são a garantia de que a nossa alma existe antes de nós nascermos. Símias e Cebes, porém, solicitam a Sócrates que defenda a outra metade da demonstração, aquela que garante que a alma sobrevive após a morte. Esquecidos, Sócrates procura simplesmente relembrá-los de que esse argumento já foi dado, sobre os ciclos do real. Basta que eles se deem conta de que os dois argumentos de Sócrates garantem plenamente a imortalidade da alma.


  • [28.06] Remédio contra o medo infantil da morte
77d-79a

Terminada a demonstração acerca da psykhé como sendo ingerada e imperecível a partir dos dois lógoi que, compostos, definem a imortalidade da alma, Sócrates percebe seus interlocutores não plenamente persuadidos, por certo ao alimentarem um medo de criança de que a alma esvoace com o vento. Cebes, que veste a carapuça, alega talvez que sua criança interior precise ser persuadida verdadeiramente por alguém capaz de cantar encantando-o. Sócrates, que propõe a figura do encantador, apresenta outros para realizá-la, de modo a compensar a decepção dos que ali presentes se ressentem por Sócrates lhes abandonar tão satisfeitos. A questão que deve ser analisada, então, no intuito de produzir alguma forma de persuasão é aquela que procura examinar que certa natureza (poiós) é capaz de causar uma dispersão que nos faz sofrer por ela, e se a alma, sendo ou não dessa natureza, deve nos alegrar ou nos entristecer em razão disso. Sócrates estabelece, de início, que a natureza compósita é a única capaz de dispersão e de alteração, por possuir elementos ou partes passíveis de serem dispostas de outra forma. A constatação de que as essências não se alteram abre uma nova distância a ser considerada, entre ela que é inalterada e invisível, e os entes a que damos o nome da essência, que são visíveis e se alteram.


  • [02.08] Em nós, quem comanda, quem obedece?
79a-80b

Após a oposição inicial entre o composto e o elementar, Sócrates articula os opostos visível e invisível como âmbitos sugestivos para a compreensão da dinâmica interior ao humano: a da percepção. Ao se servir do corpo para perceber o mundo, a alma acaba por ele dominada, embriagada com o corpóreo. Se o estado (pathema) de um raciocinar sem divagar é aquilo que chamamos sabedoria, fica claro que a alma deve buscá-lo para ser capaz de não se deixar dominar pelo corpo. A oposição entre domínio e servidão é subscrita pela oposição entre o divino e o humano, de maneira que a alma, afeita ao divino e a todas as qualidades até então apresentadas, é aquela que deve naturalmente dominar o corpo, a criança/servo interior que sofre (pathos) com a embriaguez dos afetos.



  • [09.08] A moral é consequência da metafísica?
80b-82d

É possível identificar, na experiência de um corpo sem vida (cadáver), de que modo mesmo no que diz respeito ao visível o processo de composição pode ser duradouro, e mesmo algumas partes podem se mostrar indestrutíveis. Se no caso do corpo é assim, por que acreditar que com a alma ela se dissipará tão logo deixe o corpo, ela que em tudo é mais divina que o visível? No entanto, o composto humano na vida conforma os hábitos pelos quais a alma, na morte, se aproximará do que lhe seja aparentado. Há os que cuidaram do corpo em demasia, por vezes jamais saindo do mundo visível (fantasmas, espectros); os que reencarnam em animais com hábitos semelhantes, ou que podem, pela sua virtude política, voltar à condição humana, e os que, filosofando, são os únicos a se aproximarem dos deuses. O destino das almas, desse modo, está circunscrito à moralidade fundamentada numa metafísica com implicações teológicas.
 

  • [16.08] O filósofo e o ciclo de dores e de prazeres
82e-84b

Na conclusão de seu discurso para orientar Cebes a dominar o temor de sua criança interior, Sócrates irá situar sua reflexão nas consequências epistemológicas que orientam o filósofo e a vida filosófica. Ao constatar-se na dupla constituição de sua vida humana, o filósofo percebe a situação corpórea como uma prisão, em que os prazeres e dores, as paixões no geral, são os liames que prendem a alma ao corpo. Dessa prisão voluntária ele tenta libertar-se através da reflexão, que alimenta a alma com o que lhe é próprio, de modo a torná-lo capaz de acalmar as paixões sem comercializar com elas, posto que a verdade não está nos objetos que causam a paixão, como pensa o homem material, mas nas essências captadas pelo raciocínio.



  • [23.08] As novas imagens da alma: a harmonia
84c-86e

Após finalizar seu phármakon contra o medo infantil da morte, o silêncio meditativo de todos é quebrado pelo cochicho entre Símias e Cebes que provoca a intervenção de Sócrates. Símias se mostra com receio de injuriar Sócrates em um momento de infortúnio, sem se dar conta de que com isso nega o que Sócrates estivera até ali demonstrando a eles. Essa segunda parte do diálogo começa então com uma reafirmação da postura socrático como um servidor de Apolo, tal como os cisnes e seu belo canto às vésperas da morte. Instigado por essa imagem, Símias apresenta o que lhe inquieta, ou seja, a falta de ter Sócrates conseguido mostrar a natureza da alma, de modo a evitar a ideia de que ela seja tal como a harmonia, algo invisível mas que dep3nde do corpo. A dúvida é pertinente, mas Sócrates espera ouvir a de Cebes, a fim de respondê-las em conjunto, se for capaz.


  • [30.08] As novas imagens da alma: a roupa do corpo
86e-89c

A imagem da alma como a hamornia no corpo produz em Sócrates um silêncio que lhe era costumeiro, fixando o olhar meditativamente. Decide ouvir as objeções de Cebes antes de continuar. Cebes expõe sua noção sobre o destino da alma a partir da imagem do tecelão, que durante toda vida fez roupas para si, trocando-as sucessivamente, até morrer e deixar sua última roupa mais recente. Assim também a alma, ao deixar o corpo, não pode ser dita sobreviver a ele mesmo sendo mais duradoura que o somático. As dúvidas de Símias e Cebes abalam a todos os ouvintes, e Equécrates interrompe a narrativa de Fédon para expressar sua emoção. Fédon, que naquele momento punha-se como o amado de Sócrates, espera obter com ele a força para superar as dificuldades colocadas pelos interlocutores.



  • [06.09] O perigo do ódio ao discurso
89d-91c

As objeções levantas, e a sensação de desânimo e de confusão novamente provocada nos ouvintes, faz Sócrates discursar longamente sobre os periogos da aversão ao discurso (misologia). Tal como acontece na misantropia, alguém sofre sucessivas frustrações por confiar demais nas pessoas, pondo a culpa nelas e não em si mesma e na sua ignorância de como funciona a natureza humana. No caso dos discursos, não se pode recusar o saber (tekhné) sobre o lógos, pois ignorá-lo é acabar vítima daqueles que contrapõem sempre discursos (antilogia), cuja sensação última é a de que nenhum deles é capaz de verdade. No caso de Sócrates e de seus discípulos, cabe agir como philósophos, e não como philoníkos (amantes da competição e da vitória), para não acabar deixando escapar um discurso verdadeiro que bem conduziria a nossa vida. É com essa postura que Sócrates enfrentará as objetções, convocando seus ouvintes a que apliquem seu pensamento não em Sócrates, mas na verdade.



  • [13.09] A refutação da imagem da harmonia
91c-95a

Dispondo-se a refutar as objeções levatandas pelo interlocutores, Sócrates se detém primeiramente na imagem de Símias, da alma como harmonia. Conseguindo obter o assentimento dos dois quanto a alguns argumentos apresentados na primeira parte, e valendo-se da reminiscência, mostra a Símias que ou a alma preexiste ou ela é uma harmonia. Enquanto um composto dos elementos que a tornam possível, a hamonia não pode preexistir a eles, nem admite graus, nem, por fim, pode consudir e reger os seus elementos, de modo que a alma, preexistindo à encarnação, regendo os apetites do corpo e por também não admitir graus, o que impede de se qualificar uma alma boa ou má como sendo mais ou menos harmônica. não poderia ser identificada com o que se entende por hamonia.



  • [20.09] A autobiografia de Sócrates (1ª parte)
95a-98b

A resposta à objeção de Cebes, diz Sócrates, exige uma investigação acerca das causas do nascer e do morrer. Num jogo de referências míticas, Sócrates pontua o valor dessa investigação a partir do próprio testemunho. Ele havia se enveredado pelo caminhos dos investigadores da physis, intresessado em saber o por que do nascimento, da morte e da razão de ser das coisas. A ênfase de seus exemplos, porém, chama atenção para a condição humana como tema privilegiado por Sócrates. Mas o méthodos utilizado pelos physikoi causou mais confusão: por desconhecê-lo, Sócrates avança as dificuldades que ele sentira quanto aos problemas despertados por esse estudo, até perceber não possuir nenhuma apitidão para seguir o caminho dos physikoi. Foi quando leu o livro de Anaxágoras, e descobriu ali a opinião do noûs como origem de todas as coisas. Deduz, então, que essa causa deve lhe dizer qual seria a melhor maneira possível pela qual as coisas são o que são, resolvendo o problema das causas. Dotado dessa expectativa, Sócrates devora o livro, disposto a seguir o pensador como mestre.


  • [27.09] A autobiografia de Sócrates (2ª parte)
98b-100a

A leitura do livro de Anaxágoras acaba por decepcionar Sócrates, porque o físico acaba por empreender uma explicação mecanicista dos fenômenos, deixando de lado a inteligência como causa. O argumento de Sócrates é que não faz sentido a explicação mecanicista em termos de causas, porque a causa (aitia) implica a noção de intenção, de motivação, de ser responsável por alguma coisa que acontece. O melhor a ser buscado pela mente acaba por ser desprezado nos estudos da physis, o que leva Sócrates a seguir um segundo roteiro de investigação. Essa segunda navegação pretende se dirigir não ao sol diretamente, mas ao seu reflexo no lógos, de modo a evitar a cegueira da explicação mecanicista. Nessa sua busca, o método utilizado foi o de, em cada assunto, partir da hipótese mais forte e considerar como verdadeiro o que dela se aproximasse, e falso o que dela se afastasse.



  • [04.10] Apresentação do caminho das Ideias/Formas de Platão
100b-103a

Tendo apresentado seu caminho de investigação das causas no lógos, Sócrates se põe a fazer com Cebes o exercício filosófico que evita a contenda em busca de conhecer a realidade. Esse exercício estabelece a essência (tó eidos) das coisas como um tipo de causa, aquela mais fundamental, porque é a que torna possível nomearmos os fenômenos. A explicação é, pois: algo é dito belo porque participa da beleza, e mesmo que não se saiba como ocorra essa participação, as coisas são aquilo de que elas participam. Mais ainda, as essências não abrigam em si nenhum vestígio do seu contrário, isso tanto de maneira absoluta (enquanto tais) quanto nos entes, embora nesses, de maneira relativa, possamos encontrar a presença ou sua comunhão com a grandeza e a pequenez, mas essa presença nunca será ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, porque de nenhum modo uma essência anseia vir a ser o que ela não é. Desse modo, um ente, enquanto é algo, recusa a ser e a tornar-se o seu oposto.



  • [18.10] As formas e o ciclo das oposições
103a-105b

Uma intervenção inesperada, de quem Fédon não se lembra o autor, remete a Sócrates certa contradição entre o que antes havia sido dito sobre os opostos nascerem um do outro e aquilo que acabava de ser dito, sobre os opostos se repelirem completamente. A ressalva de Sócrates, ao destacar uma diferença no tratamento de cada uma das questões, serve para o filósofo destacar a distinção entre as essências em qualidades, e aquilo em que essas qualidades constituem propriedades. Com base nessa formulação, será possível demonstrar que entes que não sejam, em si mesmos, opostos a outros, podem se tornar avessos às qualidades que são opostas àquelas que lhes contituem.


  • [25.10] O argumento final sobre a imortalidade da alma
105b-107b

O passo derradeiro para a demonstração da imortalidade da alma segue a doutrina das essências como qualidades opostas, a fim de esclarecer os fenômenos de modo menos rude e mais refinado. O modo rude era o que respondia à pergunta o que precisa brotar em um corpo para que ele seja quente? dizendo a qualidade da quentura. A resposta refinada se baseia na presença daquilo que é constituído por alguma qualidade. Isso é importante para Sócrates descrever a alma como constituída pela qualidade da vida (embora nada seja dito sobre haver algo que se constitui pela qualidade oposta, a morte), de modo que a vida, por ser incapaz de morte (athánaton), torna a alma imortal. Ela também é indestrutível, tal como os deuses e a forma da vida, de modo que na presença da morte, a alma se mantém imperecível, ainda que o mortal em nós pereça. Tanto Cebes quanto Símias não encontram outro discurso capaz de levá-los a desconfiar (apisteîn) da demonstração final de Sócrates, embora sejamos, enquanto humanos, sempre sujeitos a desconfiar e a continuar a investigação.



  • [01.11] A necessidade da vida além-morte
107b-108e

A conclusão da demonstração sobre a imortalidade da alma, após a concordância dos interlocutores, leva Sócrates a propor a opinião da alma ser imortal como hipótese. O método filosófico requer o modo intermitente de investigação a partir de hipóteses, e Sócrates apresenta, dada a sua limitação de tempo e de capacidade, de proceder a uma nova investigação. Para isso, propõe uma narração sobre os caminhos da alma após a morte, o destino dos atos maus apegados ao corpo e o guiamento das almas até o juízo e o retorno para a encarnação. Sócrates acrescenta, surpreendentemente, uma concepção que ele ouvira da forma da Terra, que Símias instiga-o a apresentar.


  • [08.11] A descrição da Terra e o destino das almas
109a-114d

Sócrates procede à descrição da Terra, ou do universo, a partir de sua amplitude em face do lugar que se ocupa, pondo-se a si mesmo no centro da vasta extensão do universo. O ar para nós é como o mar para os peixes, e se pudéssemos vê-la em sua totalidade, ela seria como uma bola de 12 faces, destacada em sua pureza ao ser contraposta à parte que conhecemos. A Terra, como extensão do que podemos ver, acabará por abranger também aquilo que não se pode ver, o lugar de destino das almas, a partir dos rios e fluxos principais, que pervadem e permeiam a extensão celeste como descrevendo o universo desde a imagem do corpo humano. As almas, caracterizadas em mediana, incurável, curável e pura, seguem os caminhos dos rios, exceto a do filósofi, que entre as últimas, liberta-se do ciclo e dos fluxos para seguir ao territírio do que há ainda mais belo, lugar que Sócrates não poderá descrever.


  • [22.11] O destino da alma de Sócrates
114d-118a

O mito, narrado por Sócrates, é digno de confiança não pelo que diz literalmente, mas pela semelhança ao que é ou deve ser a partir do que o lógos foi capaz de asseverar. Nessa confiança, vale o risco de viver a vida preocupado com os adornos mais adequados à alma. Críton, porém, ainda muito preocupado com a materialidade, serve aqui de contraposto à confiança de Sócrates. Sua dedicação ao mestre é comovente, como o serão o reconhecimento do comissário e o desespero dos demais discípulos, mas Sócrates não pode senão levá-los a compreender que nada do que digam em seu tributo se compara a vida filosófica que viverão, se cuidarem de si mesmos. A vida filosófica, como legado de Sócrates, alcança na descrição da morte do corpo do filósofo o ponto alto da simbólica do exercício de se preparar para a morte. Impedido de fazer uma libação, Sócrates requisita a Críton o pagamento de um galo a Asclépio. São suas últimas palavras, e serão melhor lidas se aproximadas das suas primeiras.



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