São Bernardo - Graciliano Ramos




Creio ser S. Bernardo, de Graciliano Ramos, um romance de contrastes, de inadequações, de hiatos. Há, sobretudo, o drama principal entre Paulo Honório e sua dificuldade de pôr a escrito seus remorsos. A palavra não parece sintonizar o que sente o corpo. É tarefa ingrata querer dispersar a dor com prosa solta.

Honório, dono da fazenda S. Bernardo, pensa poder então empreender a escrita como divisão do trabalho. Logo vê que não se divide a alma em delegações. Ainda que partida. Fracassa.

Uma alma bronca, rude, amesquinhada, possessiva, seca, mesmo que "se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige". Ele tenta, porém, recomeçar a escrita. Se não para recomeçar a si mesmo, ao menos para não se perder sem sentido.

Pois se trata, sem dúvidas, do pior dos hiatos aqui, aquele que lhe afastara para sempre Madalena. Moça estudada, culta, humana, difícil não lhe era, ao narrador, perder-se em revolta, como se indignado consigo mesmo, com sua ignorância.

E ao final, pelos descaminhos de toda sua inadequação, Paulo Honório, que nos escreve ao sinal da coruja que tudo vê à noite, os pensamentos abissais, o fundo sem fundo de sua imensidão desconhecida, ele que escreve pôde, ao certo para nós, leitores, situar a pior das inadequações da alma brasileira.

Essa que, dividida entre a ignorância orgulhosa e alguma dedicação para não terminar seus dias inútil, sem educação, percebe-se a si mesma num hiato que, até o fim, Graciliano faz suspender diante dos nossos olhos. Uma coruja, um sinal confesso de que a sabedoria, ela mesma escrita, se faz caminho único até que amarguremos continuar longe dela.

Com a única certeza de que não há como escapar: ou seremos isso mesmo sem saber, ou saberemos para poder dar algum sentido a tudo isso. O caminho está dado para quem saiba ler. E Ramos é mestre em nos ensinar a ler.

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