Série Leituras - A sabedoria da pedra
No mundo que se estende ao redor, como
um mar de ondas que vêm e vão, sentimos a ânsia irresistível de cristalizar o
que nos comove pela atração ou aversão que provocam.
As ondas vêm e vão. Sentimos dor e
prazer a cada momento. Num instante, o que sentimos muda, e já não sabemos mais
o que nos provocou. Mas sentimos. Queremos dizê-lo: alguma coisa há, porque eu
sinto. Somos a medida de todas as coisas, enquanto somos esta coisa que faz
existir aquelas coisas que nos provocam.
Eis a lição da pedra: havia alguma
coisa no meio do caminho.
Eu sou isso que é constantemente provocado no mundo. E isso que eu sou
deve ter sido provocado por algum isso:
ao tropeçar, o pé chama de pedra isso que se faz presente na dor causada no meio
do caminho.
Sou uma coisa, porque sinto coisas
que me provocam. Coisifico o mundo, porque não posso ser outra coisa. Poderia o
mundo ser também outra coisa longe do que eu sou?
Eis a educação pela pedra: “sua
resistência fria/ao que flui e ao fluir” é a mesma pedra de tropeço que
“entranha a alma” na dura esperança de continuar sendo alguma coisa.
Criamos um mundo de pedras, mas
insistimos em construir a vida sobre a areia.
Lapidamos algumas preciosas para
melhor ameaçarmos atirar outras, tão prontamente quanto queremos quebrar o
espelho que mostra nossa feiura. Quem atirará a primeira?
Não tarda a transformar pedra em
pão quem só ouve a voz da fome. Pedras são nossa medida para todas as coisas.
Quanto vale a pedra com que se fazem comprar os que anseiam possuir algum valor?
Pedra de tropeço, droga de pedra, a
rolar montanha abaixo toda vez que tentamos levá-la ao topo, feito Sísifo.
Condenados. Pedras de droga. Alucina. Chacina. Uma vida entre quatro paredes,
sem cama nem sonho.
Não estaríamos erguendo destas
pedras nossos novos filhos? Sementes caídas entre as pedras, ainda que nasçam,
são queimadas pelo sol, porque incapazes de criar raízes.
A ânsia de fixar o movimento das
coisas é o pecado original da razão. Insegurança infantil da ave que ainda não
se deu conta de que pode voar. Ter os pés no chão: sensação de explicar o
mundo, de recriá-lo à nossa imagem – “deem-me um ponto fixo e eu retiro o mundo
do seu eixo”. Plantou Arquimedes a semente. Colhemos nós ainda hoje seus
frutos.
Quanto tempo mais insistiremos em
petrificar o livre curso do ser com nossos ciumentos olhos de Medusa?
Eis a sabedoria da pedra: contra a
água insistente da vida, nenhuma pedra dura.
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