Série Leituras - A meditação do fogo
A meditação do fogo
Fogo: energia que se apega ao combustível que ele consome.
Dizia Heráclito de Éfeso, um dos mais importantes sábios da
tradição grega:
“O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem
nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se
segundo medidas e segundo medidas apagando-se” (XXIX).
“Todas as coisas trocam-se a partir do fogo e o fogo a partir
de todas as coisas, como do ouro as mercadorias e das mercadorias o ouro”
(XXVI).
“Deus: dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome,
mas se altera como o fogo quando se confunde à fumaça, recebendo um nome
conforme o gosto de cada um” (XXIII)
A natureza do mundo e a natureza da divindade, na sua unidade
dúplice, na sua oposição complementar, na harmonia tensional dos contrários,
encontra no fogo a metáfora adequada para a descrição do movimento do devir.
Fogo: energia que dança ao sabor da ferida que lhe dá a
música inevitável.
Pois se o fogo consome aquilo que lhe dá vida, é possível
subsistir vida sem fogo?
A sabedoria budista, em sua busca por livrar-se do ciclo das
existências, considera o nirvana “um estado de saúde” que corresponde “à
‘extinção’ de uma febre ardente”, do desejo persistente entendido como um “sentir
sede” que não cessa.
Esse fogo ardente, trishna,
queima triplamente: na atração pelo que amo, na aversão pelo que odeio, na
apatia pelo que não me importa. Para o Buda, a existência febril é a raiz do
sofrimento humano. Se a chama se apega ao combustível que ela consome, o nirvana
é o fogo que se apaga pelo esgotamento do combustível.
Fogo: energia que aquece e que transforma consumindo o que
ainda resta do que já não pode ser mais.
Haveria modo de, ao extinguir o fogo, não extinguir assim com
ele toda a graça de viver?
A conquista do potencial humano advém do fogo, roubo de
Prometeu. No fundo da caverna, arde a chama que aquece os olhos habituados às
sombras. Contra uma vida morna, o profeta anuncia o lago de fogo como a temida segunda
morte. Há de queimar eternamente em morte aquele que não pôde realizar a chama
de sua vida.
Fogo: energia que se apaga depois de consumir seu
combustível.
A natureza do mundo transforma-se a cada vez que se consome,
para iluminar e para aquecer, até que tenhamos queimado tudo com o mesmo fogo
que faz viver.
Haveria alguma vida sem que para vivê-la se consuma a si
mesma?
Haveria cultura sem a chama que arde para nos livrar da
solidão e da morte?
Haveria salvação não fosse ela a febril esperança de se
consumir pela perdição do afeto?
Fogo: energia que todo dia aumenta e diminui a vida que nos é
possível escolher.
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