Leite Derramado - Chico Buarque

 


Ontem terminei minha primeira leitura do Chico escritor. Digo a primeira porque não cheguei a terminar a leitura de Estorvo, seu primeiro romance, nem Budapeste, seu terceiro. Foram leituras engasgadas, que não fluíam, e ao terminar Leite Derramado percebo que, em parte, isso se devia à própria evolução do Chico escritor. Em parte, no entanto, não pude me mostrar condescendente como leitor. Esse é um mal do leitor brasileiro: quando lê um escritor brasileiro, afia sete lâminas para dizer seu desagrado com a obra. Não poucos ainda torcem o pescoço para o Chico escritor, ou por serem muito afeitos ao Chico cantor e compositor, ou por desprezarem sua arte a partir da imagem de um Chico político. Em nenhum dos casos, presta-se a devida atenção a um dos nossos grandes nomes da prosa literária. E Leite Derramado está aí para testificá-lo.

Escrito para tecer as memórias de um velho aristocrata convalescente, Leite Derramado recordou-me as peripécias de Construção, canção que dá título ao álbum de 1971, um dos marcos da sua arte de compositor. Construindo imagens que se confundem, que retornam e que se ressignificam a cada vez, a memória do velho expõe-nos a um passeio pelos excessos da sina classista da vida brasileira desde o império, o que se faz sem dúvidas a partir de um convite renovado para encontrar tais excessos bem atuantes ainda hoje, em que eles se deixam ver descaradamente. Mas também se ouve ali o sabor amargo da vida que, desfalecendo, vai perdendo não só o viço, mas o respeito e a honra.

No leito de um hospital, os excessos tendem a se equilibrar pela raiz do que somos, afinal: um conjunto de histórias e de vivências, de amores e de pesares, que se confundem porque se perdem ou se recriam, como arte. O velho de Leite Derramado, na prosa elástica e cíclica de sua memória, ressoa em seu leito de dor a única coisa que, de nós, podemos derramar: as vidas que vivemos e fomos, para todo sempre. E se a arte do Chico escritor foi capaz de se derramar assim sobre nós pelas memórias do seu convalescente, é com a força da vida que se lê que a recebemos, sua arte, para todo sempre.

Comentários

Mais lidas