Joan Didion – O ano do pensamento mágico

 

Este ano de 2021, muito perto de encerrar, me trouxe a vivência mágica da prosa de Joan Didion. Por coincidência, a morte da autora, faz alguns dias, marcou ainda mais este ano em que pude conhecê-la, em que sua prosa me conduziu ao sabor da dor e da solidão da perda, experimentado pela reflexão que Joan produziu durante o ano seguinte à morte do marido e companheiro de escrita, John Gregory Donne. O ano era o de 2003. O dia, 30 de dezembro. Por coincidência, um dia após eu terminar, neste ano de 2021, a leitura de O ano do pensamento mágico, dezoito anos depois daquele dia fatídico. "A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você senta para jantar, e a vida que você conhecia termina". As reflexões de Didion sobre o luto e a melancolia já figuram entre as mais impressionantes de que dispomos. Impressiona a capacidade de Didion nos conduzir por todas aquelas sensações mágicas que invadem a alma dos que ficam, após a morte de um ente querido. São mágicas porque pretendem superar à lógica racional dos relatórios de autopsia e dos formulários a serem assinados. A lógica fria da vida-que-precisa-continuar cedeu, durante o ano que seguira o da morte do marido John, ao mágico pensamento de poder retê-lo um pouco mais, de poder senti-lo ainda presente, de vivenciar aos poucos a sua partida. A lógica do luto ainda é em parte desconhecida, e Joan nos oferece, com dilacerante franqueza, o que há de necessariamente mágico nessa lógica. Este ano em que, por coincidência, pude conhecer sua reflexão sobre o fatídico 30 de dezembro de 2003, oferecendo, também neste 30 de dezembro, dezoito anos depois, minhas impressões sobre a leitura de sua prosa mágica, abre para mim a oportunidade de recriar, em memória sua, um pouco da riqueza que sua escrita nos legou, em memória à riqueza de vida que ela pôde experimentar ao lado de John.

Escrita é, fundamentalmente, criação e memória. Era o que diziam os gregos, a partir da inspiração das Musas, filhas de Memória e do poder criador de Zeus. Todo escritor, de algum modo, lida com o material de vidas e vivências, suas e de outros, a fim de recriá-las para permitir ao leitor vivê-las enquanto lê. A prosa mágica de Didion, nesse aspecto, é uma arte inspirada. Sua inspiração, contudo, deriva do que há de mais perturbador em nossa vida de animais conscientes. A morte, enquanto término de tudo o que poderia ser, acumula em nós a impotência frente à lógica fria da vida que muda constantemente. "A vida muda em um instante. Você senta para jantar, e a vida que você conhecia termina". A morte, enquanto término de tudo o que poderia ser, também faz encerrar tudo o que foi, ao intensificar aquela sensação incômoda que sentimos diante do que não mais pode voltar. Não há volta, necessariamente. Didion, com maestria, nos leva a um mergulho na atitude, demasiadamente humana, de toda vez nos aventurarmos tentando modificar o inevitável. Seu marido John havia tentado reverter a fraqueza de seu coração com os recursos médicos, embora isso jamais lhe tenha evitado o pressentimento de que aquele seria o mal súbito pelo qual morreria. O que ele pôde fazer foi simplesmente adiar o seu término. No fundo, todos estamos tentando, de algum modo, adiá-lo. É o máximo que podemos fazer contra o fim inevitável.

Mas Didion só pôde reconhecer a impotência de seu pensamento mágico quase um ano após a morte do marido. A superação temporária daquele mal súbito havia oferecido ao casal não só mais alguns longos anos de convivência, como os havia levado a acreditar que o mal súbito não voltaria a surpreendê-los. "Você senta para jantar, e a vida que você conhecia termina". O engano, a bem da verdade, devera-se à espontaneidade do afeto mútuo, em nutrirem-se ambos pela presença um do outro. A riqueza dessa oportunidade de conviver, de criar laços de cumplicidade em palavras, atos e memória, constantemente provoca-nos ao esquecimento de que nada dura, de que as palavras silenciam, os atos se perdem, as memórias se apagam. Esquecemo-nos de que a presença de quem amamos, deixada ali ao sofá da sala ou no quintal, não possui nenhuma garantia de se manter ali, disponível para ser ouvida, tocada, respondida. Esquecemos que a única realidade é a inconstância, e porque esquecemos, sofremos quando a vida, de súbito, faz ser o que ela simplesmente é. Era preciso, para Joan Didion, ter de lidar com a suspeita de que ela poderia ter feito algo para evitar a morte John, mas ficamos sabendo, ela irá nos dizer, que a suspeita, razão de sua angústia, era a de ter vivido ao lado de John enganada de poder tê-lo ali quando quisesse. A dificuldade em se considerar viúva era tão ou mais estranha que a de se assumir esposa. Didion, numa franqueza dilacerante, assume a pior de suas lidas com o luto como sendo aquela mesma de chegar a ter que lidar com o outro – o que, no fundo, não é senão a dificuldade em ter de lidar consigo mesma, quando as vozes ao redor se calam.

Joan Didion, viúva e com a única filha internada gravemente, precisou encontrar sua voz na escrita. "Fui escritora a vida inteira", confessa-nos – não para florear sua prosa com aquele verniz de genialidade que muitos se arrogam despudoradamente, mas para realmente confessar-se incapaz de nutrir a si mesma sem as palavras por companhia. Só depois da leitura fria do relatório da emergência e da autópsia é que Didion fora capaz de realizar a dobra de sentido em sua suspeita culposa. Foi ali, diante da racionalidade fria do que se passou, que o pensamento mágico chegara ao fim – ou ao início, permitindo-a compor, um ano após o mal súbito que lhe roubara a convivência com o marido, este relato de sua peregrinação para reconhecer a dor do luto e a única maneira de superá-la: deixando ir os mortos, ficando aqui com seu silêncio e sua ausência. A reflexão de Joan nos conduz pelo seu esforço em descobrir a lógica daquele pensamento mágico, que outra vez nos engana, porque obscurece a única realidade, a única que a todo momento ansiamos reverter e superar, mas que precisa, ao contrário, ser aceita para poder fazer outra vez florir nosso olhar, nosso mundo, nosso ser. 

"Sei por que tentamos manter vivos os mortos: tentamos mantê-los vivos para que permaneçam conosco.
Também sei que, se quisermos viver, chega um momento em que temos que nos libertar dos mortos, deixá-los ir, deixá-los mortos.
Deixar que se tornem uma fotografia em cima da mesa.
Deixar que se tornem um nome nas contas fiduciárias.
Deixar que sejam levados pela água."


Recusar a transitoriedade é recusar a própria vida, em suma. E Didion, ao confessar sua dor e sua incapacidade de lidar com ela senão por meio da escrita, revela-nos a todos, mais ainda aos escritores, que a alma se nutre especialmente da presença, das vozes, das palavras e dos atos que, mesmo na memória, se recriam e se transformam em nosso ser, colorindo nosso mundo mágico que, já agora, não deve nos enganar ao ocultar a lógica fria dos destinos, mas nos abrir a toda aquela riqueza que na vida faz brotar e murchar, porque nos faz viver. A lição é dura, mas valorosa – e a arte de Joan Didion, que pude descobrir neste mesmo ano em que ela deixou a vida, deixa-nos toda essa riqueza de uma vida que não é verniz, mas essência, em palavras que pretendem rememorar o seu sofrimento, enquanto nos ajuda a rememorá-la, já então pela alegria do luto.



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