Itamar Vieira Jr. – Torto Arado

 



Há um receio, legítimo a bem da verdade, em o leitor se aventurar por certa literatura brasileira mais recente. Não se trata de um receio em geral, isso também é verdade, mas o de um tipo de leitor que pretende encontrar em um romance não um tratado ou um panfleto, e sim um romance de fato. A arte de contar histórias, deveras prejudicada pela ânsia atual de legislar sobre os assuntos do momento, a fim de reduzir ou eliminar a distância entre a palavra e as ações (traço da chamada literatura engajada), vê-se contaminada por teses e teorias que, a despeito do gênio particular do escritor, pretendem produzir com a arte uma reflexão forçada – em vez de deixar que a reflexão surja, como ela surge em toda arte de excelência. Fica-se com a impressão, em muitos casos, de que a iniciativa panfletária pretende ocultar a falta do manejo artístico, resultado de uma deficitária imersão no aprendizado da técnica literária que, por sua vez, resulta do apelo excessivo por novidades: numa recusa por aprender com o passado porque então considerado envelhecido, caduco, eurocêntrico, demasiadamente clássico, encerra-se na inspiração de movimentos tortos e erráticos, numa falta de sentido que oprime as palavras, ou talvez pretenda lhes atribuir o sentido não só artístico e espiritual, mas sobretudo político e identitário. A perda de sentido, que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche identificava, na cultura, com a perda do estilo, é das mais terríveis consequências de nosso niilismo moderno, modernista, pós-moderno, em todo apreço e interesse por arte. A leitura que ainda se faça, sob a primazia do estilo poético e literário, receia ter de encontrar panfletos em lugar de um bom romance. O valor da arte engajada, apregoado sob a influência persistente de nomes como Sartre, acabou por retirar valor da arte, a fim de colocá-la a serviço dos interesses políticos.

Minha disposição em ler Torto Arado, de Itamar Vieira Jr. (2019), publicado pela Todavia e laureado com os prêmios Oceanos e Jabuti (2020), seguira o fio desse receio, em não encontrar senão mais uma arte panfletária. Isso se devia não apenas ao fato de os prêmios literários serem hoje meros veículos de publicidade de pautas específicas, mas sobretudo pelo modo como o romance era elogiado por figuras de renome do nosso cenário político e cultural. Pude sentir, porém, desfazerem-se tais receios, como vapor d'água, desde as primeiras páginas. A escrita de Itamar é suavemente sísmica, como aquela que há de melhor na prosa mundial. Com pequenas frases, somos abalados de tal modo que sentimos o peito acelerar como se por apreensões fantasmagóricas, quando o autor está nos convidando simplesmente a vivenciarmos o que há de densamente real a partir do que as palavras nos evocam. Para ilustrar essa experiência, o fatídico acidente em que se envolvem as irmãs protagonistas do livro, Bibiana e Belonísia, serve de modelo dessa evocação, deixando-nos arredios cada vez que voltamos a ler as novas situações, tecidas pelos dilemas da vida no sertão, que ampliam os efeitos tensionais daquele acidente. A perda da fala é um fato por si mesmo emblemático do destino das irmãs: forçadas ao convívio com seu próprio silêncio, tornam-se as vozes a partir das quais vivenciaremos a secura dos trabalhadores da Fazenda Água Negra. A perda da língua é o acidente que dá voz às irmãs como narradoras.

Das três partes em que se divide o livro, as duas primeiras são narradas por cada irmã. Apenas durante a segunda parte, porém, ficamos sabendo, muito de passagem, que Belonísia, a narradora, desenvolvera um gosto particular pela composição escrita. No caso de Bibiana, a irmã mais velha e narradora da primeira parte, nada sabemos de seu gosto pela escrita: ela chega a se tornar professora ao deixar a fazenda, e apoia o marido e primo Severo na organização dos trabalhadores ao retornarem à fazenda a fim de reivindicarem aquela terra, vendida e maltratada, como território quilombola. Por ser a primeira voz que ouvimos, ficamos sabendo com Bibiana do acidente que mutilou totalmente a língua de sua irmã, e parcialmente a sua. Eis um ponto simbólico interessante, porque a presença da voz narrativa, em face do ocorrido, aproxima Bibiana de Belonísia através da necessidade de se complementarem: "uma era a voz da outra e uma sentia o que a outra sentia". O laço de proximidade e cumplicidade traçado pela ausência da voz, contudo, se romperá devido ao ciúme pelo suposto desejo mútuo que as identificava no amor ao mesmo homem, voltando a se recompor anos depois, jamais do mesmo jeito. Como a terra deformada pelo arado torto, que tende a torná-la infértil, as cicatrizes pelas quais sofrem as irmãs foram feridas desde o início em razão da cobiça e da inveja, cujo símbolo descobriremos na presença constante do brilho da faca. A lâmina afiada, ao atravessar gerações, destina aqueles corpos a serem regados pelo sangue que escorre sem vida, a molhar a terra árida de um peito arredio e machucado. O tempo apenas enrijece a dor, sem tornar o corpo menos sensível às agruras padecidas em silêncio.

Pela dor, a escrita nutre sua voz. Após a morte do pai Zeca Chapéu Grande, líder do jarê, uma espécie de guia espiritual e curandeiro, a narrativa de Belonísia, a narradora da segunda parte, encontra-se no que considero uma encruzilhada. A partir do capítulo 17 da segunda parte, ouvimos o que se impõe facilmente como uma literatura engajada. Os relatos da revolta política, encabeçada pelo cunhado Severo, forçam a escrita de Belonísia ao mero panfleto contra o inimigo branco, e aquele leitor receoso, sobre o qual falamos, poderia aqui dar por terminada a parte decididamente artística de Torto Arado. Quem for mais sensível à letra, perceberá o tom acelerado das cenas, a completa inexistência de dramas internos, a presença massiva de atos e de suas explicações, padronizadas por vieses políticos. Não há como não identificarmos aqui Itamar, através de sua Belonísia, ceder à voz dos movimentos identitários, por pouco não perdendo a sua. A bem da verdade, é uma felicidade não vê-lo ceder totalmente. E a inventiva construção narrativa da terceira parte do livro, sob a voz de um dos encantados (aquele que assumira o corpo do pai Zeca e que estava agora à procura de um destino após a morte do corpo que assumira), oferece-nos um último suspiro a que toda aquela beleza de sua prosa não se desviasse de seu destino: também aqui a narrativa é emblemática, ao sugerir, pela procura que faz o encantado por um novo corpo, que não pode haver maior beleza na escrita que a de poder encontrar a própria voz. É pena que a terceira parte tenha se arrastado em detalhes sobre um passado que pouco ou nada acrescenta ao destino das irmãs, senão pela fatídica faca e o seu significado geracional. De certa forma, já sabíamos que a lâmina era o que havia arado aqueles corpos com sangue, de modo que a voz do encantado na parte final do livro não chega a assumir seu destino em se sobrepor às vozes das irmãs. 

Ainda assim, nos surpreende podermos encontrar a voz própria de um autor já em seu livro de estreia. Se ouvimos, em Torto Arado, os dilemas da alma seca e densa no sertão sofrido, espécie de território ancestral daquilo que fazemos e somos enquanto arte e vida, ouviremos não mais, ou não apenas, ressoar Cabral ou Graciliano, mas a voz de Itamar Vieira Jr. Se lemos com vivacidade todo o vigor da cultura de matriz africana, a força de sua contribuição tantas vezes silenciada entre nós, ouviremos não mais, ou não apenas, ressoar Jorge Amado, mas a prosa sísmica de Itamar. Uma voz disposta a ceder, esperamos, não ao ritmo fácil e apressado da literatura engajada, mas ao drama humano, que outra vez e sempre situa a arte naquilo que há de melhor em nós – exatamente por tornar possível que o drama fale, ainda uma vez mais e sempre, com vozes renovadas e atuais.

Comentários

Mais lidas