Tomás A. Gonzaga - Cartas Chilenas


 

As provas da autoria de Cartas Chilenas ainda são dúbias. Ao que tudo indica, Critilo, o narrador que escreve ao amigo Doroteu, era pseudônimo de Tomás Antônio Gonzaga, o maior dos poetas da faina inconfidente, e o amigo Doroteu a quem escreve era o segundo maior, Cláudio Manoel da Costa. Dentre os indícios menos seguros, aventou-se a disputa, narrada na 8ª carta, após o favorecimento que o então governador Luís da Cunha Menezes, alvo dos ataques sarcásticos da obra que o parodia como fanfarrão Minésio, havia dado ao capitão José Pereira Marques, contra os interesses da coroa e das normas jurídicas, desautorizando a junta cujo chefe era o ouvidor de Vila Rica, Gonzaga. 

Afora esses detalhes circunstanciais do contexto em que se eleva o tom de crítica das 13 cartas reunidas e pouco divulgadas (ainda que se alegue terem sido de ampla circulação, a primeira edição das cartas é feita por Nunes Ribeiro apenas em 1845), os mais interessantes devem-se ao estilo, preconizados pelo olhar crítico de Manuel Bandeira, que observa nos versos de Cartas um largo uso da figura de estilo elmanismo ou separação, em homenagem a Bocage, que dela se vale em excesso, como o autor de Marília de Dirceu. Ao lado de Bandeira, também o historiador Luiz Camilo de Oliveira Neto e o crítico Afonso Arinos de Melo Franco, que se puseram a debater sobre a autoria da obra, haviam chegado ao mesmo parecer, atribuindo a Gonzaga o estilo observado em Cartas Chilenas.

A origem da desconfiança sobre a autoria de Cartas surge pelos apontamentos do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, que por duas vezes muda sua opinião, atribuindo a Alvarenga Peixoto primeiro (1851) e a Cláudio Manoel da Costa depois (1867). Provavelmente, a situação levantada por essa desconfiança exposta por um tipo erístico como Varnhagen, além dos méritos decisivos daqueles três críticos mencionados acima, teriam motivado Sérgio Buarque de Holanda a retomar a questão num estudo publicado na Revista do Brasil, entre os anos de 1939 e 1941..

Quanto ao estilo, as 13 cartas satíricas são compostas em versos decassílabos brancos, endereçadas por Critilo a  Doroteu na Espanha, descrevendo-lhe as decisões arbitrárias do governador de Santiago no Chile, apelidado de fanfarrão Minésio. A relação entre Chile e Espanha, assumida sob a perspectiva da Metrópole e Colônia, denuncia, entre outros indícios, o tom de paródia da sátira, justificada pelo clima desencadeado pelos movimentos da chamada Inconfidência Mineira, descoberta e dissolvida em 1789, ano da Revolução Francesa. O paralelo nos ajuda a destacar um aspecto significativo da obra: tendo sido editadas só meio século depois, Cartas acaba por se confirmar, antes que um panfleto de denúncia, comuns na França revolucionária, um testemunho daquela realidade que deu origem à inconformação que gestou a conjuntura inconfidente. Como valor histórico, portanto, é inestimável. Como poesia, no entanto, os méritos são díspares.

Para Antônio Candido (Formação da Literatura Brasileira), os versos de Cartas Chilenas denuncia um poeta pouco afeito à beleza melódico e mais debruçado sobre a querela e a denúncia, a ponto de, concentrado no debate, "sentirmos o panfletário se impor ao poeta e o ressentimento pessoal nortear o panfleto. Era pois Critilo bom artista, mas homem de gênio forte" (p. 159). A indignação movida contra a moral e o direito violados impinge ao verso o aspecto filosófico que o emoldura, mas não os impedem de caírem no abstratismo, em formalidades administrativas avessas ao leitor leigo.

O que mais incomoda, assumida a autoria por Gonzaga, é a distância entre este sátiro mordaz e o árcade das liras bucólicas derramadas por sua musa Marília. Foi Sérgio Buarque quem chamou a atenção para a necessária recusa do ideal a que fora submetido o maior dos poetas inconfidentes, intuito mitológico de forjar uma fundação e construção da identidade nacional, obsessão de uma historiografia romântica. É valendo-se dessa desconstrução do imaginário mítico em torno do poeta que Buarque pôde assumir, a partir da análise das ideias desenvolvidas em Cartas Chilenas, que nada há ali de revolucionário, mas de um simples burocrata cuja "atitude é a de um rigorosista à moda antiga" (Tentativas de Mitologia, p. 226). Reler as cartas, sob a perspectiva de uma nova imagem de Gonzaga, é não apenas um destino histórico desejável, mas uma experiência poética necessária, a fim de sermos capazes de realocar, a nosso favor, o multiforme gênio do verso de Tomás.

Edição: Cia das Letras

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