Poemalimpo, Prólogo - Especial para o dia do poeta
A
poesia é a capacidade de condensar em belos versos a riqueza experiencial de
nossas impressões. Assim eu havia
entendido, anos atrás, a atividade poética que me cabia. E nada tenho a objetar
a mim mesmo. Concebo que os versos trazem em símbolos a gama de vivências que
todos nós, poeta e ouvinte e leitor, padecemos mas regozijamos a cada dia em
momentos tão diversos quanto são os sentimentos ou pensamentos que a partir
deles alimentamos – com a gritante diferença de que o poeta vivencia o
esforço, quase mesmo diário, de transpor momentos e sentimentos em busca da
expressão mais bela daquilo que de outro modo não passaria de gritos e gemidos
e desilusões.
Ninguém
que tenha se aventurado em rimas e versos está insensível a esse esforço que pulsiona
nosso corpo, por dias e horas de extremada dificuldade – afinal, em meio a tantos
apelos de sobrevivência nesse país condenado à riqueza material e à miséria
espiritual, só com extrema força de vontade alguém se dedicaria à poesia. E desde
meus anos tardios, essa dedicação não vê tréguas. Culpa portuguesa do efeito poético
de Bocage sobre minha alma, com alguma excursão pela boca escarnecedora de
Gregório, até vir a descobrir nosso Drummond. Descoberto os versos,
aventurei-me por odes e sonetos, acima de tudo sonetos, arcabouço dessa poética
que brotava em mim. Desejei mais a poesia que a vida por exprimir, enquanto
colhia impressões vividas tão intensamente, no lado de dentro do peito, que não
seria possível aos meus versos aprisionarem minha alma por muito tempo. A prosa
logo me conquistou pelo olhar debochado de Machado, e dos poucos versos que havia
composto transpus minha expressão aos influxos fluviais de águas mais
prosaicas.
A
poesia, no entanto, permanecia como adendo necessário às paixões da alma, como um
espírito que pairasse sobre as palavras em prosa. A poesia é mesmo um espírito,
tornado carne por suas formas e encantos. É um fazer, uma produção
expressiva da palavra que nos alimenta quando nos ouvimos ao dizê-la. É arte,
no sentido grego da artesania e da técnica, e também é divindade, força
divina que pulsa nesse animal que somos e nos constrange em direção à beleza,
aos apelos eternos e fulgurantes de um belo rosto e uma bela ideia, de nos
confessarmos a nós mesmos o quanto nos debilitamos perante o belo aspecto de
existir. Rilke tinha, e difícil era não ter, razão: “no interior desse indivíduo, os segredos das coisas se fundem com suas mais
profundas sensações e se tornam audíveis a ele, como se fossem seus próprios
anseios. A rica linguagem dessas confissões íntimas é a beleza”. Mais
enfática ainda são as palavras de Thomas Mann pelo narrador de Morte em
Veneza: “a quase todas as
naturezas artísticas é inata uma tendência exuberante e traidora: reconhecer a
beleza criadora de injustiças e manifestar aristocrática preferência, interesse
e homenagem”. A beleza nos move a pecar em meio à injustiça
poética: eis uma descoberta.
E
na beleza se compraziam meus primeiros versos, que permanecem trancafiados na
solidão dos cadernos de rascunhos, não chegados a ver um público. Não que
estejam ausentes do ímpeto em se mostrarem: ausentes estão ainda de um trato
que lhes permita vir à luz. Culpa de Pessoa, fonte de novas paisagens para
minha alma heterônima; de Melo Neto, professor de sentimentos metafísicos em
versos distanciadamente áridos,
milimetricamente nordestinos.
Culpados em demasia são Rilke e Tolentino, dois oceanos em que, mergulhado,
vejo minha beleza poética não mais que de recém-nascido, aprendendo a andar com
seres humanos tão incomuns em nosso dia a dia que talvez isso explique porque
só mesmo uns poucos chegam nas terras daqui a parar de engatinhar como velhos
babões.
Aprender
a andar: eis o desafio que me impus há anos e que agora, parece, ofertam seus
primeiros passos. Muitas quedas perfazem o caminho, pois afinal, sem dores nos
joelhos, não se pode dizer ter chegado a algum lugar. As quedas, no entanto,
são culpa minha, não dos adultos que, de sua altura exemplar, recebem com todo
carinho as imperfeições daquele que deseja com eles aprender. E embora de uma
estatura não tão elevada, devo lembrar-me das lições tornadas oportunas junto à
figura controversa de Nequete, espécie de monstruoso velho ranzinza a nos assolar,
a mim e aos meus amigos à época da infância, que após tê-lo reencontrado eu já
de mais idade pude melhor conhecer sua dedicação diária ao teatro e à poesia,
componentes principais de uma obra desconhecida entre nós. Morreu quando fazia
poucas semanas havia prometido mostrar-lhe novos versos e trechos do romance
que eu escrevia. Morreu obscuro, fazendo-me conhecer a atividade do poeta em
vida, sua prática reclusa e laboriosa de forjar a beleza que o brasileiro
despreza com toda sua valentia. E morto, como os demais mestres que me
acolheram em seu universo poético, vive em cada escultura que ergo, reclusa e
laboriosamente, para talvez encontrar alguns tantos a fugirem da arrojada
ignorância geral, a fim de se tornarem adultos nesse país tão infantil.
A
vida do poeta é mesmo controversa. Isso talvez explique a derradeira
necessidade de vir a se manifestar em prosa, como faço agora, para bem dizer a
dialética da alma em sua complexidade de arrancar os cabelos. E foi a sra.
Woolf aquela que me fez ver que a manifestação poética não deve ser obra de
versos apenas: seu livro As ondas, o primeiro grande romance a me
arrebatar a alma, é um exemplar indescritível, porque indiscernível, de uma
prosa que se obtém poesia, algo dramática. Não me era possível, e mesmo hoje,
bem delimitar o vale estreito tornado invisível e, por que não, inexistente entre
prosa e poesia no texto de Virgínia. Era-me um cartão de visitas, mesmo um
ingresso para a aventura da expressão em prosa, que tornou-se, por algum tempo,
mais forte que a inspiração em versos. Não que eu perdesse a poesia sempre
presente: só não podia, como me ensinara Woolf, resumi-la simplesmente à
escultura em versos. Havia de ser igualmente possível fazê-la brotar em parques
e jardins mais extensos.
Dos
jardins prosaicos, Rilke fez-me ver a beleza que igualmente se pode conferir à
poesia por meio da prosa. A elevação espiritual de suas reflexões e metáforas
soaram aos meus ouvidos juvenis como cânticos místicos sobre os mistérios da
divindade – escondida por trás da natureza do mundo, desprezada pelas reduções
materialistas que dela fazíamos. A poesia de Rilke revelou-me a profundidade
daquela dialética prosaica, inevitável à alma envolta nas contradições da vida
e desejosa de lhe conferir alguma síntese, possível apenas pela escultural
dedicação aos versos como à vida cotidiana. Drummond já antes me tinha servido
para a mesma filiação de estilo, sem, todavia, possuir este nosso grande
prosador poético aquela revelação metafísica, religiosa em grande medida, que
meu espirito havia muito almejado, e que encontrava em Tolentino e Hilst. A
arte simbolista de Rilke tornou-se ela mesma um símbolo ao meu intento poético.
Mas,
é preciso confessar, ainda me parece difícil superar o apelo por expressão em
prosa, sobretudo depois de meu encontro recente, analogamente simbólico, com a
prosa de Hesse. Esse grande expressionista, nos termos em que o analisa
Carpeaux, fez emergir em conjunto dois afluentes de um mesmo rio, meu impulso
poético: de um lado, a desenvoltura literária necessária a uma narração
confessional, atordoante e, talvez por isso, curativa; de outro, a força da
beleza poética, vigorosa em cada uma de suas páginas exemplares, que nos conduz
ao enfrentamento desnudo ao mesmo tempo com os influxos mais baixos de nossa
selvageria e com os impulsos mais elevados do anseio pela eternidade. Deus e o
diabo aqui são duas faces da mesma moeda: a alma do homem, imersa em si
mesma, na sua descrença e desilusão modernas, denunciada depois por Camus em
seu absurdo. A expressão com a qual Hesse nos deixa entrever a nós
mesmos a partir de si é digna de espanto, dignamente filosófico, e de
admiração, se não apenas filosófica, em grande parte artística. Talvez sejam as
obras de Hesse os antepassados mais imediatos dos versos que chegam à luz neste
livro.
Chegam-no
como expressões de minhas impressões, só muito remotamente podendo neles
encontrar traços do expressionismo alemão ao tempo de Hesse. Duas
características desse movimento, contudo, são claras aqui: impulsões de ordem
sexual e uma religiosidade subterrânea. O sagrado e o profano, enquanto pólos
de dias e noites dialéticas em prosa
e poesia, vivenciadas por impressões que trago desde o alvorecer de minha
consciência, são mesmo a tônica dominante, a perspectiva pela qual nossa vida
tupiniquim parece igualmente se manifestar, ao
menos diante dos meus olhos. Em ambos os casos, é a beleza que produz o
caminho, que ilumina a via de acesso ou, em termos platônicos, a escalada do
material ao imaterial. Na dialética entre sagrado e profano, não há síntese
humana: e o desejo de opor um ao outro, em uma alma demasiadamente artística,
só pode encontrar vestígios de síntese na possibilidade de ao menos expressar o
conflito, a condição por vezes incômoda de haver-se cara a cara com as mais
trágicas e cômicas vicissitudes da existência, de se saber por isso parte dessa
trama e desse drama.
É
como expressão de conflito que dou à luz esses versos. Talvez chegue a soar bem
mais próximos ao espírito do expressionismo alemão do que eu gostaria: espécie
de poesia de Schrei (grito), uma arte em que a máxima é aquela frase
ressaltada em Hermann Stehr pela crítica: “a alma vomitou”. Gostaria,
entretanto, que esses versos fossem mais que um grito de juventude, de uma alma
revoltosa e revoltada com o atual estado de coisas. Queria, sinceramente, que
uma tal poesia pudesse, independente mas não isenta de seus tropeços, conduzir
alguns poucos leitores – pois de tão poucos leitores se trata mesmo para a
poesia – ao prazer de poder, com espanto e admiração, entrever nossa situação
atual e quiçá alguma possibilidade de modificá-la, em nós sobretudo.
Porque
se trata, como mostrou-me a arte de Hesse, de deixar entrever-nos nesses versos – um intuito que, se não for alcançado,
perdoem o pobre poeta, que ao invés de seguir o conselho aos jovens por cartas
tão bem ministradas por Woolf e Rilke, resolveu apressar-se em publicá-los.
Talvez a própria iniciativa de vir a publicá-los seja ela mesma o grito
deste meu expressionismo dominante. Não importa. Pois quando se chega a sentir
a necessidade de gritar, é porque a alma não pode mais esperar a situação em
que a sensatez volte a tomar seu lugar. É preciso gritar – e ao contrário do vômito:
na máxima dedicação em deixar que o grito seja o menos tosco e nojento
possível... Afinal, ao artista não é dado satisfazer-se com gemidos ruidosos:
sua arte deve exalar a música que da alma invade versos e prosas.
Rio de janeiro, 22 de Março de 2014
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