Shakespeare - Sonho de uma noite de verão


Já no título de sua peça (A Midsummer Night's Dream), o bardo inglês brinca com as contradições, pondo os opostos em complementaridade. Midsummer é a forma como se diz o solstício de verão, que hoje é na primavera, porque antigamente só havia três estações. Uma cantiga do seculo XIII que nos diz "summer is a-coming in" significa, ao contrário de seu sentido literal, "a primavera está chegando". Por oposição às referências benéficas ao solstício de inverno, em que se comemora o Natal, a primavera é vivida, pela cultura do Norte, com alguns maus presságios, que pareciam desencadear uma espécie de loucura de verão (midsummer madness). Essa loucura, no fim das contas, corresponde àquela agitação da libido e dos ânimos, que nos deixa, pelo calor excessivo, mais à flor da pele. O calor que agita os corpos e, por meio deles, as almas é sinal de que a luminosa racionalidade cede à ilusão dos sentidos, transformando o meio do verão, o ápice da luz que aquece, numa noite de sonhos primaveris. É por isso que em "Sonho de uma noite de verão" o sol não se faz soberano. Toda a peça está genialmente tecida pelas metamorfoses da lua como símbolo da loucura -- e do amor. Numa inversão cômica da tragicidade de "Romeu e Julieta", estamos postos aqui bem diante do que há de mais risível -- e mais terrível -- nessas calorosas paixões humanas.

A moldura da peça é dada pelo futuro casamento de Teseu, o rei, que espera até a próxima fase da lua para festejá-lo. Mas na trama, são as loucuras de amor dos mais jovens que invocam as confusões noturnas. Hérmia, que ama e é amada por Lisandro, vê-se obrigada pelo pai a casar com Demétrio, que é amado por Helena, amiga de Hérmia. Para escapar à lei ateniense, Lisandro e Hérmia fogem para a floresta, a fim de concretizarem seu amor sob a bênção da natureza. Mas o reinado dos seres naturais está sob o domínio de Oberon, esposo de Titânia -- a rainha das fadas. O reinado da natureza ferve com as fantasias. O que Teseu assume como delírios da imaginação são parte inerente da racionalidade luminosa. Não se vê a luz sem a escuridão.

No reino das fadas, o amor é delírio, é jogo, é desrazão. Oberon, entediado com Titânia, põe-na em jogo sob o feitiço de uma poção de amor, quer vê-la outra vez enlouquecida, apaixonada. Mas Puck, responsável por executar os planos de Oberon, é zombeteiro e irresponsável. Da poção, pinga sobre os olhos da rainha e também de Lisandro, pondo este enlouquecido de amor por Helena. Hérmia, a disputa, é agora preterida. Também Demétrio fora enlouquecido pela poção, e rivaliza com Lisandro pela decisão de Helena. Aqui os dois se fazem joguetes eternos do destino de amar, que os transforma em rivais -- porque desejo é sempre imitativo, e ao fazer-nos desejar o que outro deseja, põem-nos diante do ciúme e da inveja. Também a invejosa Helena, até então ressentida por não ser desejada como Hérmia, está agora no lado oposto, sem saber ao certo como administrar a sensação de estar no lugar da amiga.

A noite de verão é simbolo da loucura de se deixar refazer pelas vicissitudes do desejo. A ilusão de não pertencer a si mesmo esboça, no delírio dos jovens rivais, a realidade inconfessa de nossa alma desejante. Entregar-se ao desejo é ver com o olhar do sonho. A poção do amor fecha os olhos para abrir os do coração, confusos por não poder mais distinguir a quem ama verdadeiramente. Quando a noite chega ao fim e a poção é desfeita, as palavras proferidas em delírio perdem seu sabor caloroso, até que a mente, fria e calculista, possa construir algo novo dos escombros. Mas já então a luminosidade do amanhecer não é mais a mesma. O sonho, diria Freud, realizou desejos recalcados que agora, vindos à luz no calor da noite, desvelam o que se mantinha em silêncio. A primavera, tempo em que floresce a natureza, dá à luz a verdadeira natureza do desejo em sua escuridão, que pretende ser mais real que a vida desperta. No oxímoro como recurso de estilo, o bardo convida-nos a refletir sobre aquilo mesmo que, profundamente real, tentamos desqualificar como ilusão onírica. É Hipólita, rainha das Amazonas e futura esposa de Teseu, que põe em palavras o que aquele sonho pôde revelar:

But all the story of the night, told over,
And all this minds transfigur'd so together,
More witnesseth than fancy's images,
And grows to something of great constancy;
But howsoever, strange and admirable. (V.1.23-27)

Se a crueza das contradições do amor-desejo é o tecido que reveste as diversas fases lunares dos amantes perdidos de si mesmos, o poeta não poderia deixar que perdêssemos a oportunidade de sorrir com nossa miséria em cena. Para tanto, Shakespeare encena uma pequena farsa, quase a sugerir que, pelo efeito espectral de espelhos confrontados, sentíssemos a vertigem do que teimamos em calar. A luz da lua, que é secundária porque refletida, destaca suas fases a partir de uma inevitável metamorfose do olhar. Os reinados complementares, o mundo da vigília de Teseu e o dos sonhos de Oberon, refletem ainda outro: o da vida cotidiana e o da arte. A encenação da peça dentro da peça derruba o "muro" que separava os reinos, já agora transfigurados junto aos delírios inocentes de Button, único dos humanos a ter visto as fadas, quando Titânia por ele caíra apaixonada. Button, que na farsa dentro da peça assumiu o papel de Píramo, não pode senão fazer de seu sonho a própria luz com que reflete o real, mesmo que dele não possa mais se lembrar. É já uma luz refletida, um luar que, em vez de obscurecer a clareza da razão, aquece o olhar com o desejo transmutado em arte -- nosso sonho acordado. É Shakespeare o poeta que derruba os muros, tensionando as oposições até que elas nos revelem sua crueldade admirável.

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