Dostoiévski - Os Irmãos Karamazov

 


O mundo assombrado pelos demônios - eis o nome de um livro de divulgação científica, mas que bem poderia ser o título das Obras Completas de Fiódor Dostoiévski. Não há, na história da literatura ocidental, um escritor mais obcecado pelo lado obscuro da condição humana do que o autor russo. Desde Gente pobre e aquelas faíscas de bondade nascidas em meio à lama dos homens duplos, carregados de um desespero de subsolo, até a perversidade posta em sintonia com os anseios de um Raskolnikov, mas também posta em contraste com a ingenuidade de um idiota, a alma da vida russa e, por que não dizer, de todos nós põe-se às claras pelo jogo de lusco-fusco que sobressai toda vez que só temos uma lanterna para poder iluminar um quarto escuro. Em Os irmãos Karamazov, obra-testemunho da vida e da genialidade de Dostoiévski, os demônios estão à solta, e parecem não se importar com a luz do dia, porque já não lhes resta mais nada no mundo capaz de fugir de sua sombra.

O enredo dessa sua tragédia final é rico em detalhes. O narrador parece nos encaminhar, com paranoia histérica, aos meandros da psicologia e da ética de suas personagens, dispondo-as de tal modo a nos fazer acreditar que somos, passivamente, os mais fiéis espectadores do inferno. Uns poucos, é verdade, parecem se salvar de algum modo. O caso do filho mais novo do senhor Karamazov, Aliocha, ilustra bem o tipo de angústia que a bondade pode chegar a sentir em um mundo completamente relativizado. Nesse mundo de contrastes, até mesmo a bondade se relativiza, e Aliocha, com seu coração puro, não se pode perceber muito diferente de seus irmãos. Dmitri e Ivã, seus irmãos, são a encarnação das vicissitudes pecaminosas, e isso na dupla acepção humana, ou seja, no corpo e na alma. Os irmãos, respectivamente, representam o lado sombrio da humanidade em sua ânsia por realizar seus desejos físicos e por se aventurar em suas reflexões intelectuais. Dmitri e Ivã, os irmãos de Aliocha, são para este último o contraste perfeito entre o que deve haver no céu e o que inevitavelmente se conhece do inferno. Aliocha, de coração puro, por vezes se percebe também atravessado pelo delírio sexual de Dmitri e pelo niilismo cético de Ivã.

Todos esses seres decaídos, no entanto, não são mais do que os filhos da mãe Rússia, encarnada aqui na figura do senhor Karamazov, o pai dos três. Viúvo e dono de uma fortuna, o senhor Fiódor Karamazov é um devasso intratável, disposto a consumir o dinheiro da herança dos filhos em bebida e em noites de prazer. Apaixona-se por Gruchenka, a paixão do seu filho, também devasso, Dmitri, e a disputa pelos recursos financeiros transforma-se num embate por intercursos sexuais com aquela dama que, vendo-os porem-se em briga por sua causa, regozija por tê-los debaixo dos seus pés. Esse triângulo amoroso, tão característico das obras de Dostoiévski, como fora já destacado pela teoria mimética de René Girard, acentua aquilo que o pai da psicanálise Sigmund Freud, por seu turno, entenderia como a representação moderna do complexo de Édipo, um complexo que se consuma com o parricídio. E de fato, depois de tantas tentações e afrontas, a morte do pai, que desde o início do romance se apresenta como suspeita ao olhar dos personagens e dos leitores, concentra as esferas de vida de cada um como incapazes agora de girarem em torno de si mesmas. A morte do senhor Karamazov, por assassinato, comprova-se, é o ponto alto da trama universal que o escritor russo nos oferece, com a intenção de revelar os fios soltos e as ideias criminosas que escureceram os aposentos de nosso coração.

A força maior dessas ideias sombrias expõem-se por palavras em Ivã. O grande inquisidor, peça teórica de suma importância para se entender o destino dessa humanidade corrompida que Dostoiévski nos desenha, defende a rejeição do mundo pelo cético niilista, disposto a rejeitar o próprio Cristo caso ele retornasse a Terra. A força religiosa inquisidora que rejeita sua fonte de inspiração divina é a chave dessa lógica da decadência na obra de Dostoiévski: o mundo e todo o seu sofrimento, com todos os seus demônios, não é digno da mitologia de bondade oferecida por um Deus salvador. Não há salvação, e na verdade os humanos não a querem. A rejeição do mundo originado por Deus em Ivã sustenta, no delírio final que o acometerá durante o processo que julga Dmitri como culpado pela morte do pai, a figura diabólica que lhe expõe o ridículo de suas crenças na descrença. O delírio, ocasionado pelos encontros sucessivos de Ivã com Smerdiakov, o servo e provável filho bastardo de seu pai, ao confessar ter sido ele o autor do crime e Ivã o seu cúmplice, põe a termo a saúde física e mental daquele homem tão cheio de si. Doente e louco, sucumbe aos cuidados de Catierina, a noiva de seu irmão Dmitri e o motivo, até então, da dissidência entre os dois. Na tentativa de livrar o irmão da condenação, assume a culpa perante o júri, mas sua loucura é anteposta a uma nova declaração de Catierina que, dizendo-se de posse de uma carta em que Dmitri confessa o roubo e o assassinato do pai, põe sob seus pés toda pretensão de inocência do ex-noivo. Dmitri condenado é o símbolo da sentença inevitável daqueles que, entregues ao sabor da loucura sombria da perversão e da violência, veem-se envergonhados pela bondade que recusaram.

A bondade recusada, muito provavelmente, poderia ser uma espécie de subtítulo dessa obra do escritor russo. Em paralelo ao drama do núcleo familiar dos Karamazov, Dostoiévski nos pinta o de uma família vítima de seu rancor por Dmitri, a descontá-lo sobre Aliocha, o de coração puro, simplesmente por ser ele também um Karamazov. Iliúcha, o filho do capitão reformado Snieguiriov que havia sido atacado por Dmitri, retribui a tentativa de Aliocha de salvá-lo dos meninos que estão a atacá-lo com uma mordida no dedo. O pai retribui a tentativa de Aliocha ajudá-los em sua dificuldade financeira com uma recusa do dinheiro, então lançado ao chão. A bondade de Aliocha, retribuída com descaso e afronta, será ao final aceita por Kólia, um dos mais inteligentes meninos que haviam afrontado o garoto Ilúcha, cético e niilista como Ivã, agora então capaz de reverter suas ideias e suas ações. O garoto Kólia, que seguirá junto com Aliocha até à casa do então doente Iliúcha, é o símbolo dostoievskiano para a esperança de uma humanidade sombria e assombrada por demônios. O discurso de Aliocha ao final, a seus garotos jovens amigos, aponta uma saída na amizade e na bondade, últimos pilares do amor que salva de todo inferno. Mas que demora a trazer o céu à Terra, é bem verdade. Só que nenhuma demora, nenhum tempo pode ser tão longo que o de uma eternidade em perdição. Os garotos, ao final, são nosso meio de esperar por algum futuro melhor. Se não por uma vida livre da condenação de pertencer à família Karamazov, ao menos pela possibilidade de sustentar um coração puro e bondoso como o do jovem Aliocha.


Edição 34

Breve o lançamento da Edição Nova Fronteira


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