Catulo, nosso 'irmão' romano

Catulo e Lesbia, de Alma-Tadema (1836-1912)

(CARPEAUX, Otto Maria. 3. ed. -- Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. 4 v. [Edições do Senado Federal; v. 107-A], p. 102-103)


Com Cícero e Lucrécio acaba uma fase decisiva da literatura romana: a tentativa de introduzir espírito filosófico na política ou na religião de Roma não foi, depois, repetida. A literatura romana volta-se para individualismo algo evasionista que lhe convém, produzindo uma série admirável de poetas líricos, poetas menores, sim, mas por isso mais perto da poesia lírica moderna do que qualquer poeta lírico grego.

 

Catulo[1], o mais velho entre eles, é o maior. Os seus contemporâneos sentiram isso de maneira muito segura: Cícero, o crítico literário da burguesia moderada, indignava-se contra esse poeta “moderno”, licencioso e modernista. Era preciso conhecer bem a poesia grega para chegar a esse julgamento; porque a comparação com os fragmentos conservados da poesia grega revela a dependência do poeta romano; a originalidade não é o seu lado mais forte. Parece até decadente, nas suas miniaturas cinzeladas da vida amorosa de um jovem aristocrata que leva uma vida boêmia sem trabalho, fora da política, pensando só em Lésbia; e essa Lésbia parece uma amante convencional, como qualquer outra dos poetas da rotina erótica. Mas não é assim. Nem sempre Catulo elabora a forma. Às vezes, fala em ligeiro estilo coloquial – um crítico francês lembrou Musset[2] – e às vezes escapam-lhe imagens inesperadas da “luz noturna”. E o autor da famosa expressão “Odi et amo...” (odeio e amo...) conhece os segredos psicológicos do amor. Catulo é um apaixonado. Lésbia é uma mulher real que o fez sofrer amargamente. As poesias dedicadas a ela constituem um ciclo; são “poemas de ocasião”, no sentido da expressão de Goethe, nascidos, sem artifício, de uma paixão poderosa. Catulo domina todas as modulações: desde a alegria ébria do canto de núpcias –

“Hymen, O Hymenaee, Hymen ades, O Hymenaee!”

até a melancolia desesperada perante a certeza da noite perpétua que nos espera:

“Nobis, cum semel occidit brevis lux,

Nox est perpetua una dormienda.”

 

Catulo é um poeta muito humano. A ele também, nada de humano foi alheio, e defendendo-se contra a acusação da licenciosidade (“mais infeliz” o poeta se sente do que decaído) –

“Non est turpe, magis miserum est” –

revela a sua condição humana. Catulo é, no primeiro século antes da nossa era, um poeta moderno. É, entre os poetas, o primeiro que se comove com a paisagem. As águas azuis do Lago di Garda evocam-lhe os dias da infância feliz, e a solidão melancólica da sua vida em Tibur lembra-lhe a sombra do irmão morto, ao qual dedicou a mais bela das canções de despedida para sempre:

“... atque in perpetuum, frater, ave atque vale.”

 

Como um irmão, o leitor moderno sente o poeta romano Valério Catulo.



[1] Caius Valerius Catullus, 87-54 a. C.

Edições modernas por R. Ellis, 6.ª ed., Oxford, 1937, e por W. Kroll, Leipzig, 1923.

O. Weinreich: Die Distichen des Catullus. Leipzig, 1926.

T. Frank: Catullus and Horace. New York, 1928.

E. V. Marmorale: L’ultimo Catullo. Napoli, 1952.

L. Ferrero: Interpretazioni di Catullo. Torino, 1955.

[2] Alfred Musset (1810 — 1857) foi poeta, novelista e dramaturgo  do Romantismo francês do séc. XIX. [N.E.]



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