Sófocles e a tragédia no teatro grego


 

SÓFOCLES

 (CARPEAUX, Otto Maria. 3. ed. -- Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. 4 v. [Edições do Senado Federal; v. 107-A], p. 61-62; 71-73)

 

 O teatro grego[i] é de origem religiosa; nunca houve dúvidas a esse respeito. As tragédias – e, em certo sentido, também as comédias – foram representadas assim como se realizam festas litúrgicas. Mas quanto à liturgia que teria sido a base histórica do teatro grego, ainda não se chegou a teses definitivamente estabelecidas. As pesquisas da escola antropológica de Cambridge parecem ter confirmado, embora precisando-o, o que sempre se soube: a tragédia grega nasceu de atos litúrgicos do culto do Dioniso. Outros estudiosos ingleses procuram, porém, a fonte da inspiração trágica em ritos fúnebres, realizados em torno dos túmulos de heróis. A discussão continua[ii]. É da maior importância para a história da civilização e da religião gregas. Mas é de importância muito menor para a história literária. Podemos continuar adotando a intuição genial de Nietzsche: a tragédia grega é a transformação apolínea de ritos dionisíacos. Por isso, o único conteúdo possível da tragédia grega era o mito, fornecido pela tradição; enredos inventados pela imaginação do dramaturgo, que enchem os nossos repertórios, estavam excluídos. Tratava-se de interpretações e reinterpretações dramáticas de enredos dados. Mas não é esta a única particularidade do teatro grego, em comparação com o nosso: a diferença estilística não é menos importante. O teatro grego é mais retórico e mais lírico do que o moderno. Os discursos extensos, que os gregos não se cansavam de ouvir, seriam insuportáveis para o espectador moderno, que prefere, a ouvir discursos, ver e viver a ação. O grego, ao que parece, frequentava o teatro para se deixar convencer da justeza de uma causa, como se estivesse assistindo à audiência do tribunal ou à sessão da Assembleia. E os requintes da retórica, superiores em muito aos pobres recursos da eloquência moderna, não bastaram para esse fim: acrescentaram-se, por isso, aos argumentos do raciocínio as emoções da poesia lírica, acompanhada, como sempre, de música, de modo que a representação de uma tragédia grega se assemelhou, por assim dizer, às nossas grandes óperas. Mas a ópera moderna é gênero privativo das altas classes da sociedade, enquanto a tragédia grega era instituição do Estado democrático, e a participação nela era de certo modo um direito e um dever constitucionais. Assim, a tragédia grega era uma discussão parlamentar na qual se debatia, lançando-se mão de todos os recursos para influenciar o público, um mito da religião do Estado. Considerando-se isto, as concorrências dos poetas, que apresentaram peças, perdem o caráter de competição esportiva: a vitória não cabia ao maior poeta ou à melhor poesia dramática, mas à peça que impressionava mais profundamente; quer dizer, à peça na qual o mito estava reinterpretado de tal maneira que o público se convencia dessa interpretação e – podemos acrescentar – por isso o Estado a aceitava. Tratava-se de um acontecimento político-religioso, que ocorria uma só vez. O teatro grego não conheceu representações em série. Com a representação solene, a causa estava julgada, a lei votada. O verdadeiro fim do teatro grego – assim reza a tese sociológica – era a sanção duma modificação da ordem social por meio de uma reinterpretação do mito.

 

Esta interpretação do teatro grego não pode ser, evidentemente, de aplicação geral. Não se aplica, pelo menos em parte, ao teatro de Eurípides; só nesse sentido esse grande poeta representa a decadência do teatro grego. Mas já quanto a Sófocles há dúvidas das mais sérias: o sentido do seu teatro não é, evidentemente, social, mas religioso: duma religião antropocêntrica. Talvez seja mesmo impossível dar uma interpretação geral do teatro grego, porque não o conhecemos suficientemente. Só conhecemos o teatro ateniense, e deste apenas poucas peças, de três dramaturgos.

 

Sófocles[iii] representa a tentativa de mediar entre os extremos; e quando a mediação se revelou impossível, o grande poeta trágico cantou uma elegia suave e dolorosa, irresistível, que pareceu à posteridade síntese perfeita. Por isso, Sófocles foi sempre o poeta preferido dos partidários do equilíbrio puramente estético: dos classicistas.

 

É grandíssimo artista. Artista da palavra, dono de extraordinário lirismo musical, sobretudo nos coros. Mas foi também artista da cena, sábio calculador dos efeitos, mestre incomparável da arquitetura dramática, da exposição analítica do enredo. Entre o pathos coletivista de Ésquilo e o pathos individualista de Eurípides, a tragédia semipolítica, semi-sentimental de Édipo revela força superior de emoção; conflito coletivo e conflito individual estão ligados de maneira tão íntima que o efeito se torna independente de todas as circunstâncias exteriores, efeito permanente. O espectador moderno reconhece-se nos personagens de Sófocles, primeiro grande mestre da dramaturgia de caracteres. O fim, porém, é sempre a emoção lírica: a arquitetura dramática serve para arrancar aos personagens o lamento elegíaco. A elegia é a arma estética do homem contra o Destino; inteiramente só, sucumbe Ájax, o apaixonado, incapaz de cantar a elegia, e quando o homem martirizado pelo Destino emudece, então há ainda o coro para restabelecer o equilíbrio lírico do mundo; são os coros do Édipo em Colonos que completam a tragédia do Édipo.

 

“Lirismo” é o verdadeiro nome da ordem divina e humana no mundo de Sófocles; sintomas dum equilíbrio precário, porque puramente estético. Na Antigone, não existe mediação dramática possível entre a lei cruel e inelutável que impõe a Creon, tirano contra a vontade, a perseguição do inimigo para além da morte, e, por outro lado, o sentimento íntimo, quase cristão, da Antígone: “Não nasci para odiar com os outros, mas para amar com os outros.” Não existe mediação dramática entre Ésquilo e Eurípides. Mas existe, entre eles, a eurritmia poética, a medida lírica.

 

Sófocles estava inconsciente da natureza precária da sua solução. Não se afasta da realidade, não mente. A dor trágica, no Philoctetes, revela-se como instrumento da vontade divina, como instituição deste mundo, e ao homem só resta a elegia: “Nunca ter nascido seria o melhor; mas se vives, melhor é voltares, quanto antes, para o lugar de onde vieste.” Contudo, o pessimismo de Sófocles – um crítico moderno fala de “visão pavorosa da vida” – não é absoluto; porque pelo sofrimento, e só pelo sofrimento, conseguimos a plena consciência da nossa situação no cosmo. Sem o conflito trágico com a lei do Estado, Antígone seria só uma criatura sentimental; o conflito lhe revela a força do seu imperativo de consciência que lhe impôs a resistência – e assim Antígone se tornou o símbolo permanente de todas as Resistências. De igual modo se torna Édipo o símbolo permanente dos erros trágicos da humanidade: através das complicações dum enredo quase diabólico, os erros se dissipam e Édipo se transforma de homem infeliz em homem trágico, aceitando o que a vida lhe impôs. No fim das tragédias sofoclianas, os personagens são mais dignos do que eram antes. Eis a solução euripidiana que Sófocles achou para o conflito esquiliano: ordem divina e ordem terrestre, cujo conflito torna tão dolorosa a vida, reconciliam-se na dignidade humana. Em Sófocles, tudo é harmonia, sem que fosse esquecido uma só vez o fundo escuro da nossa existência. Sófocles é humanista. Mas não é um humanismo satisfeito e suficiente, porque o humanismo grego nunca se esquece da precariedade do mundo, pela possível ira dos deuses, nem da tristeza deste mundo que nos impõe o silêncio piedoso no fim da tragédia.

 

O humanismo de Sófocles prestou-se para ser erigido em resultado definitivo, dogma estético, modelo. O humanismo antigo, porém, assim como a religião grega, não conheceu dogmas. O dogma teórico estava excluído pelo caráter pragmatista da civilização antiga, na qual era considerado peso morto, ou antes inexistente, o que não tinha efeitos vitais. O “humanismo” da literatura grega não significa guarda de tradições culturais e sim a capacidade de intervir na vida; é comparável ao “lugar na vida” pelo qual os folcloristas modernos classificam o conto de fadas, a lenda, a parábola e outros gêneros semelhantes da literatura oral. O “lugar na vida” da epopeia homérica encontra-se na interpretação da vida; o “lugar na vida” da poesia grega encontra-se na disciplina musical das emoções; o “lugar na vida” do teatro grego encontra-se na reinterpretação do mito; o “lugar na vida” da historiografia grega encontra-se, assim como o da filosofia, em interesses políticos, e está determinado pela retórica.



[i] G. Norwood: Greek Tragedy. London, 1920.

T. D. Goodell: Athenian Tragedy. New Haven, 1920.

R. C. Flickinger: The Greek Theatre and it´s Drama. 2.ª ed. Chicago, 1922.

M. Pohlenz: Die griechische Tragödie. 2 vols. Leipzig, 1930.

E. Howald: Die griechische Tragödie. Muenchen, 1930.

A. M. G. Little: Myth and Society in Attic Drama. New York, 1942.

J. Duchemin: L’Agon dans la tragédie grecque. Paris, 1945.

G. Nebel: Weltangst und Götterzorn. Eine Deutung der griechischen Tragoedie. Stuttgart,

1951.

[ii] W. Ridgeway: The Origin of Tragedy, with Special Reference to the Greek Tragedians.

Cambridge, 1910.

M. Nilsson: “Der Ursprung der Tragödie”. (In: Neue Jahrbücher für klassische Philologie,

1911.)

J. E. Harrison: Themis. Cambridge, 1912.

J. E. Harrison: Ancient Art Ritual. New York, 1913.

A. W. Pickard-Cambridge: Dithyramb, Tragedy and Comedy. Oxford, 1927.

A. W. Pickard-Cambridge: The Theatre of Dionysus. Oxford, 1946.

[iii] Sophokles, 496-406 a. C.

Das mais ou menos 120 peças que a tradição antiga menciona, existem 7: Ajax

furens, Antigone (representada em 442), Oedipux Rex (429), As Traquinianas, Electra

(413?), Philoctetes (409), Oedipus em Colonos (representada só em 401). Perderam-se:

Ifigênia em Aulis, Laocoon, Nausicaa Niobe, Danae, Bellerophon, Daidalos, Phaedra,

etc.

Edição por A. C. Pearson, Oxford, 1923.

U. von Wilamowitz-Moellendorff: Die dramatische Technik des Sophokles. Berlin,

1917.

T. T. Sheppard: Aeschylus and Sophocles. New York, 1927.

H. Weinstock: Sophocles. Leipzig, 1931.

E. Turolla: La poesia di Sofocle. Bari, 1933.

K. Reinhardt: Sophokles. Frankfurt, 1933.

G. Perrota: Sofocle. Bari, 1935.

C. M. Bowra: Sopoclean Tragedy. Oxford, 1945.

F. R. Earp: The Style of Sophocles. Cambridge, 1945.

A. I. A. Waldock: Sophocles Dramatist. Cambridge, 1951.


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