Platão e a poesia filosófica

 


(CARPEAUX, Otto Maria. 3. ed. -- Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. 4 v. [Edições do Senado Federal; v. 107-A], p. 76-80)

 

Os diálogos de Platão[i] constituem um mundo completo como nenhum outro poeta – além de Dante – criou. No fundamento da construção quase cósmica encontram-se os diálogos polêmicos com os sofistas, as discussões meio literárias, meio comediográficas, do tipo do Protágoras e Górgias; no Mênon estabelece-se o programa da Academia socrática que conservará nome e memória do mestre. Platão não tem, contudo, o intuito de escrever uma biografia documentada do seu mestre: Sócrates é, para ele, um símbolo, e simbólico é o fim da sua vida, o suicídio sereno após o discurso sobre a imortalidade da alma, no Fédon. Daí em diante, o Sócrates dos diálogos platônicos torna-se centro de uma companhia fantástica de seres superiores, cuja reunião máxima, cheia de alegria sublime, é o Simpósio, o banquete de Sócrates com o poeta trágico Agatão, o comediógrafo Aristófanes, o pederasta Pausânias, o médico Erixímaco, o aluno de filosofia Fedro e a sacerdotisa Diotima; é uma noite de ebriedade patética; e durante a discussão desenfreada surge o mito de Eros, explicação da atração física e espiritual entre as criaturas humanas. Ao amanhecer, entra Alcibíades, e com ele a realidade de Atenas, associando-se ao banquete filosófico. Quer dizer, o Eros que está nas regiões “baixas” do corpo e igualmente no céu da especulação filosófica, o Eros também seria a nova força de ligação entre os cidadãos, o novo mito da Cidade. Desde então, Platão abandona os abismos do seu inferno de sofistas e as prisões do purgatório das almas, em que Sócrates sofreu, para subir ao paraíso da sua mitologia. No Timeu conta, como advertência, o mito historiográfico do continente de Atlântida que se perdeu como se está perdendo a Grécia. Na República, o mundo inferior é simbolizado como aquela caverna mítica, na qual os homens, prisioneiros dos sentidos, só veem as sombras das ideias verdadeiras, refletidas pela luz da “anamnese”; e Platão opõe, na mesma obra, à educação irreligiosa dos sofistas o mito da educação totalitária da mocidade grega, a fim de que ela integre o Estado utópico, em que a Verdade, a Beleza e a Justiça acham realização. O malogro de Platão na tentativa de realizar a Utopia na Sicília já não teve importância: o realismo grego incluiu também, no seu cosmos, as criações do espírito, e estas em primeira linha. Neste sentido, o mito platônico já era uma realidade, mais real até do que a vida política, que, desligada do seu mito tradicional, já não tinha realidade completa e ia agonizando.

 

Os mitos platônicos são criações poéticas em cuja realidade o seu autor acreditava; correspondem àquelas invenções na Divina Comédia que não têm base no dogma ou nos axiomas da filosofia tomista, e que, no entanto, representam a realidade florentina que Dante encontrou no seu outro mundo. Tampouco os mitos platônicos são axiomas filosóficos; por isso, Platão os expôs em diálogos de índole literária, dramática, com a pretensão de criar uma Cidade e talvez uma religião, mas sem a pretensão de defender um sistema filosófico. Nunca, na Antiguidade, os diálogos de Platão foram citados como obras de filosofia racional. O grande criador de fórmulas filosóficas entre os gregos foi Aristóteles, do qual não pode tratar a história da literatura, porque – ao que parece – todas as suas obras literariamente elaboradas se perderam, ficando-nos apenas cadernos de notas e aulas[ii]. Os mitos de Platão são antes metáforas poéticas, às quais a posteridade atribuiu correspondência com realidades superiores. A atividade de Aristóteles parece principalmente um esforço de corrigir, segundo as experiências empíricas e conclusões lógicas, os “erros” de Platão: o equívoco do “platonismo”. Mas aqueles “erros” revelaram-se indestrutíveis: toda a história espiritual da humanidade, de Sócrates em diante, é uma psicomaquia entre os seus dois sucessores. No campo da filosofia racional, a vitória coube, as mais das vezes, a Aristóteles. Mas a influência indireta de Platão, através da especulação cristã e de toda a literatura idealista, foi maior. O filósofo Platão agiu, na história, indiretamente; a ação direta era impedida pela forma da sua obra. Pois Platão é poeta.

 

A origem da poesia platônica talvez fosse casual; a dramaturgia do diálogo seria – como o estilo coloquial de Platão revela – a transformação artística das conversas filosóficas que Sócrates inventara para refutar os sofistas e expor, de maneira dialética, os seus próprios conceitos. Essa origem será motivo das maiores dificuldades para a compreensão da filosofia platônica. A filosofia de Platão é dogmática: baseia-se num a priori, a existência das ideias e o seu reflexo na nossa mente. O método dialético, imposto pela índole pragmatística do espírito grego, era o mais impróprio para expor essa filosofia dogmática, e teve como consequência o fato de certos conceitos, como a relação ontológica entre as ideias e os objetos materiais, nunca se tornarem bem claros e constituírem até hoje a crux dos comentadores. O próprio conceito do mito, em Platão – realidade religiosa ou verdade filosófica? – não está inteiramente claro. Há em Platão as ambiguidades que caracterizam, segundo Coleridge, a poesia. O método dialético e a exposição dialogal eram caminhos de evasão, assim como a explicação dos dogmas platônicos mediante as perguntas e respostas, um tanto cépticas, de um Sócrates meio imaginário. Essa interpretação da dramaturgia do diálogo, em Platão, baseia-se em duas premissas: a existência de outros escritos platônicos, não dialéticos e sim dogmáticos, embora estejam perdidos; a evolução da sua dramaturgia no sentido da eliminação gradual da dialética com a evolução do dogma idealista. A existência desses outros escritos, hoje perdidos, foi afirmada por Werner Jaeger, com argumentos convincentes. A evolução da dramaturgia platônica foi provada por Stenzel[iii]; na República, o diálogo já está praticamente eliminado; no Parmênides e no Sofista, a figura de Sócrates perde a importância. Nos últimos diálogos, o “Homero da filosofia” está transformado em legislador dogmático de uma utopia já malograda; e desaparecera a arte.

 

Platão, porém, era essencialmente poeta. Mais poeta do que filósofo, porque a mera “compreensão” não o deixou satisfeito. O caminho da sua evasão poética levou-o até os confins do mundo da razão, até o mito. Afinal, Platão é um grande espírito religioso. Não é fundador de uma academia; antes é o profeta de uma seita. Esta seita, porém, transformou-se na Humanidade.



[i] Platão, 427-347 a. C.

A ordem cronológica dos diálogos, estabelecida por Wilamowitz-Moellendorff, é a seguinte: Íon, Hippias, Protágoras, Apologia, Criton, Laches, Lysis, Charmides, Euthyphron, Thrasymachos, Gorgias, Menexenos, Menon, Kratylos, Euthydemos, Phaidon, Symposion, Respublica, Phaidros, Parmênides, Theaitetos, Sophistes, Politikos, Kritias, Timaios, Philebos, Leges.

Edição moderna por I. Burnet, 2ª ed., 7 vols., Oxford, 1941.

U. von Wilamowitz-Moellendorff: Platon. 2 vols. Berlin, 1919.

A. E. Taylor: Plato; the Man and His Work. New York, 1927.

P. Friedlaender: Platon. 2 vols. Berlin, 1928.

A. Diès: Platon. Paris, 1930.

G. Lowes Dickinson: Plato and His Dialogues. London, 1947.

R. Wildholz: Der philosophische Dialog als literarisches Kunstwerk. Bern, 1953.

 

[ii] W. Jaeger: Aristoteles. Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung. Berlin, 1923.

 

[iii] J. Stenzel: Studien zur Entwicklung der platonischen Dialektik von Sokrates zu Aristoteles. 2ª ed. Leipzig, 1931.


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