Homero, o maior dos poetas


 

HOMERO

(CARPEAUX, Otto Maria. 3. ed. -- Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. 4 v. [Edições do Senado Federal; v. 107-A], p. 46-53)

 

Nenhum autor clássico alcançou jamais fama tão indiscutida[i]. O nome de Homero tornou-se sinônimo de poeta. Essa glória é, em grande parte, o resultado de inúmeros esforços malogrados de imitá-lo. Será difícil enumerar as epopeias “modernas” que se escreveram para rivalizar com Homero; e o fracasso manifesto de todos os imitadores fortaleceu a unanimidade de opinião: Homero é o maior dos poetas. Os gregos antigos consentiram, mas por outros motivos; porque nunca – senão nas últimas fases da decadência literária – um poeta grego pensou em imitar Homero. As epopeias homéricas eram consideradas como cânone fixo, ao qual não era lícito acrescentar outras epopeias, de origem mais moderna. A Ilíada e a Odisséia eram usadas, nas escolas gregas, como livros didáticos; não da maneira como nós outros fazemos ler aos meninos algumas grandes obras de poesia para educar-lhes o gosto literário; mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo. Para os antigos, Homero não era uma obra literária, leitura obrigatória dos estudantes e objeto de discussão crítica entre os homens de letras. Na Antiguidade também, assim como nos tempos modernos, Homero era indiscutido: mas não como epopeia, e sim como Bíblia. Era um Código. Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas, como argumentos irrefutáveis. “Homero”: isto significava a “tradição”, no sentido em que a Igreja Romana emprega a palavra, como norma de interpretação da doutrina e da vida.

 

Mas essa doutrina e essa vida não têm nada com a nossa vida e as nossas tradições. Homero é, podia ser a bíblia dum mundo alheio. O famoso “realismo objetivo” de Homero, que o tornou norma da vida grega, afasta-o justamente da nossa vida, cuja realidade exigiria outras normas objetivas, diferentes. Para nós outros, Homero não pode ser outra coisa senão símbolo de uma grande obra literária, puramente literária e capaz de ser discutida. Por isso, a autenticidade das epopeias homéricas – a famosa “questão homérica” – teria tido a maior importância para os gregos antigos, a mesma que tinham nos séculos XVIII e XIX as discussões entre os teólogos sobre a autenticidade dos livros bíblicos. Para nós, a questão homérica, que tanto apaixona os filólogos e arqueólogos, é de importância bem menor. Antes, tratar-se-ia de saber se a Ilíada e a Odisséia são monumentos veneráveis ou forças vivas. Mas não pode haver dúvidas: embora imensamente remotos de nós, os dois poemas continuaram sinônimos de Poesia.

 

Matthew Arnold, no seu ensaio sobre a arte de traduzir Homero[ii], deu ao “realismo homérico” uma definição estilística: o estilo de Homero seria “rápido, direto, simples e nobre”. As três primeiras qualidades definem o realismo; pela quarta, distingue-se Homero de todos os outros realistas. Homero fala de tudo o que é humano; inclui na vida humana os deuses, que têm feição nossa, mas também o lado infra-humano e até animal da nossa vida. As fadigas físicas, a comida, o amor nas suas expressões físicas, tudo entra em Homero, e as palavras mais grandiloquentes sobre deuses e heróis dariam só um contraste desagradável com a realidade da vida descrita, se não fosse aquela quarta qualidade do estilo homérico: tudo parece dignificado, nobre, e não pela escolha de eufemismos, mas pelo emprego de adjetivos e comparações estereotipados. A monotonia aparente dessas repetições parece dizer-nos: vejam, a vida humana é sempre assim, é eternamente assim; e esse aspecto das coisas sub specie aeternitatis dignifica tudo, sem desfigurar jamais a verdade. Homero – ou como quer que se tenha chamado o poeta, não importa – consegue o milagre de dar vida verdadeira em fórmulas fixas, em clichês. Não importa se isso é resultado das capacidades inatas de um povo genial ou do trabalho de um gênio poético. Revela a presença de uma grande capacidade de estilização, da mesma que se mostra na composição das duas epopeias.

 

A Ilíada está cheia de ruído de batalhas e lutas pessoais. À primeira vista, é difícil distinguir os pormenores; tudo e todos parecem iguais, como nos quadros dos pintores florentinos do século XV, nos quais todas as figuras têm a mesma altura. A análise do enredo patenteia logo uma multiplicidade de episódios em torno dos personagens principais: ira, abstenção e luta final de Aquiles, as empresas bélicas individuais de Ájax, Diomedes e Menelau, as intervenções de Agamêmnon e Ulisses, aquele nobre, este prudente, a sabedoria episódica de Nestor e a maledicência episódica de Tersites, e mais os episódios troianos: a fraqueza de Páris, a bravura estóica de Heitor, o sentimento sentimental de Andrômaca, o sentimento trágico de Príamo. O fim de Tróia não é absolutamente o assunto do poema. No começo, é indicado como assunto a ira de Aquiles. Mas esta “Aquileis” ocupa só parte do poema; outras partes, nas quais a luta por Tróia é o assunto, quebram a unidade, e a “Aquileis” termina no trágico cântico XXIII, sem que cheguemos a assistir à queda de Tróia. Mas a Ilíada tem um canto mais: o XXIV. O fim da epopéia é o encontro entre Aquiles e Príamo: entre Aquiles, cuja atitude pessoal impediu a realização dos planos gregos, e Príamo, que sabe, no entanto, condenada a sua cidade. O mesmo, porém, sabemos desde o começo e através de todas as lutas episódicas: Tróia está perdida. A Ilíada é um poema grego; a maior parte dos acontecimentos narrados passa-se entre os gregos, e o ponto de vista do poeta parece o grego, contra os troianos assediados. Nas versões latinas da Ilíada que se fizeram no fim da Antiguidade e que passam sob os nomes de Dictys e Dares, o ponto de vista mudou: os autores tomam partido pelo lado troiano; e a Idade Média, que só conheceu essas versões latinas, acompanhou-os. Desde o tempo dos humanistas, parece-nos isto uma deturpação do sentido da epopéia; mas teremos de admitir o senso de justiça na interpretação medieval. Homero é grego; mas não toma partido, mantém-se objetivo. Quase ao contrário, o seu sentimento humano inclina-se mais para os troianos; é aos gregos que ele lembra, em versos memoráveis, o destino de todas as gerações que “caem como as folhas das árvores”; e o único episódio em que se revela certo sentimentalismo é a cena de despedida entre Heitor e Andrômaca. Em toda a epopéia, sente-se vagamente, e dolorosamente, o futuro fim da cidade assediada; a tragédia de Tróia é o desígnio poético que unifica os episódios dispersos da Ilíada em torno de “Aquileis”, que termina com o golpe decisivo contra Tróia: a morte de Heitor.

 

Idêntica unidade de composição se revela na Odisséia. Na aparência, não há ligação entre o “Nostos”, a viagem de Ulisses pelo Mediterrâneo em busca da pátria, e o “Romance de Ítaca”, a expulsão dos pretendentes da fiel Penélope. O “Nostos” é um grande conto de fadas: as aventuras de um capitão fantástico, entre lotófagos, ciclopes, sereias, faiacos, nas ilhas da Calipso e da Circe, entre os rochedos de Cilas e Caríbdis; é, ao mesmo tempo, pesadelo e sonho de felicidade de marinheiros gregos. O “Romance de Ítaca” não é conto de fadas: é um quadro doméstico, quase burguês, descrito com o realismo de um comediógrafo parisiense do século XIX, com intervenções de realismo popular, desde a figura do pastor até o cão de Ulisses, que reconhece o dono e morre. Exatamente no meio, entre as duas partes, no canto XI, há a “Nekyia”, a descida de Ulisses ao Hades, onde encontra os mortos da guerra troiana lamentando a vida perdida. Com esse episódio as aventuras acabam. A partir desse momento o poeta dos heróis canta a realidade prosaica: a casa, a família, os criados e o cão. No reino da Morte, Ulisses encontra o caminho da vida. A “Nekya”, entre as aventuras fantásticas e o caminho de casa, serve para comemorar o fim sombrio de Tróia e o destino trágico dos gregos, dos quais só Ulisses encontrará a paz final na vida de um aristocrata grego com os seus filhos, criados e animais domésticos. Com esse “realismo nobre”, confirma-se a unidade íntima entre a Ilíada e a Odisséia.

 

A dúvida que se levanta sobre a unidade dos dois poemas nasce, porém, dessa mesma unidade. O equilíbrio entre o Olimpo e a tragédia na Ilíada, entre as aventuras fantásticas e o idílio crepuscular, na Odisséia, é tão perfeito, a objetividade dos poemas é tão grande, que o leitor se esquece de que lê poesia. O enredo das duas epopeias é como a própria vida humana: não foi inventado; tudo devia ter acontecido assim. Não é preciso explicar nem interpretar nada. O poeta desaparece atrás do poema. E por isso foi possível duvidar da sua existência histórica; depois, da identidade dos autores de duas epopeias; enfim, da autoria individual dos poemas.

 

As dúvidas já eram antigas, mas o grande advogado do Diabo foi Friedrich August Wolf. Nos seus Prolegomena ad Homerum (1795) apontou as contradições e diferenças estilísticas entre a Ilíada e a Odisséia, e dentro das próprias epopeias; baseando-se nas experiências do século XVIII, que tinha descoberto a poesia popular anônima e acreditava possuir nas canções do lendário Ossian um pendant nórdico dos poemas homéricos, Wolf negou a unidade das epopeias, que seriam composições do gênio coletivo dos gregos. A paixão do Romantismo pela poesia popular e pela “inspiração” sem colaboração da “Razão” dos classicistas aprovou a tese wolfiana. Karl Lachmann (Betrachtungen über die Ilias des Homer, 1837) considerava a Ilíada como coleção de 16 poemas independentes, depois unificados por um “redator”. G. Hermann (De interpolationibus Homeri, 1832) admitiu a autoria de Homero – o nome não importa – para dois poemas de tamanho curto: “A Ira de Aquiles” e “O Retorno de Ulisses”; seriam os núcleos em torno dos quais as epopeias se teriam desenvolvido por meio de interpolações e suplementos anônimos, atribuídos depois ao próprio Homero. A análise cada vez mais acurada da linguagem, do estilo e da composição convenceu a maioria dos filólogos; a grande autoridade de Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff é principalmente responsável pela vitória provisória da teoria coletivista[iii].

 

Contra as dissecções filológicas revoltaram-se, porém, os críticos que não perderam de vista as qualidades literárias dos poemas: o agrupamento simétrico dos discursos, a antítese intencional entre Aquiles e Páris, o julgamento ético dos personagens, a resposta explícita da Odisséia às dúvidas que a leitura da Ilíada deixa subsistir. Contradições encontram-se também em obras autênticas de autores individuais, antigos e modernos, e as contradições homéricas perderam cada vez mais a importância que lhes foi antigamente atribuída, em face da unidade de concepção e composição das duas epopeias. A idéia romântica de poesia popular e coletiva revela-se como preconceito, e o “unitarismo” ganha cada vez mais terreno[iv].

 

O estudo da estrutura dos poemas, em vez da análise destrutiva, revela-lhes a unidade dos desígnios. Parece haver contradição entre a ética heróica de guerreiros, na Ilíada, e a ética familiar de aristocratas latifundiários da Odisséia. Mas aquela ética bélica é a glorificação da kalokagathía, do ideal da perfeição física e espiritual, o mesmo que informa a introdução da Odisséia, a chamada “Telemaquia”, na qual se descobriram os intuitos pedagógicos que Fénelon tinha adivinhado[v]. Os desígnios pedagógicos de Homero foram, depois de Eduard Schwartz, estudados por Jaeger[vi], ficando esclarecida a função dos poemas homéricos na Antiguidade. O pathos heróico da Ilíada e a ética aristocrática da Odisséia são imagens ideais da vida, que exercem influência duradoura sobre a realidade grega. Na “Telemaquia” e na “educação” de Aquiles, essa intenção é até manifesta. O instrumento da intenção pedagógica é a criação de exemplos ideais, tirados do mito. A tradição só ofereceu uma série de lutas; Homero interpretou-as como vitórias exemplares de homens superiores, e a maior dessas vitórias é a de Aquiles. Por isso, a Ilíada não vai além desta última vitória, que é essencialmente uma vitória do herói sobre si mesmo. A presença dos deuses homéricos, que são, por definição, ideais humanos, revela não só a condição humana, mas também a capacidade dos homens de superá-la. Na Odisséia, os deuses agem como instrumentos da Justiça no mundo: daí o happy end, a substituição do desfecho trágico pelo idílio. Esses “exemplos” aplicam-se – e Homero acentua isso – aos temperamentos mais diversos e aos homens de todas as condições sociais. Os gregos de todos os tempos encontraram em Homero respostas quanto à conduta da vida; o conteúdo e até a arte perderam a importância principal, considerando-se a força superior da tradição ética.

 

“Homero” é o próprio mundo grego. Nasceu com a civilização grega: a língua e o metro, o hexâmetro, nascem ao mesmo tempo. Pertencendo a uma época que é, do ponto de vista histórico, uma época primitiva, as epopeias homéricas revelam simultaneamente a existência de uma literatura perfeitamente amadurecida. Não é possível determinar com exatidão a época em que as epopeias homéricas foram redigidas. Quando Schliemann descobriu, na Ásia Menor, as ruínas da cidade de Tróia, e quando se revelou, em Micenas e Creta, a existência de uma civilização pré-helênica, esperava-se a solução definitiva do problema homérico. Não se conseguiu, porém, estabelecer um acordo perfeito entre as análises filológicas e as descobertas arqueológicas. A Ilíada descreve fielmente a época feudal da Grécia[vii], e o conteúdo da Odisséia está em relação íntima com a época fenícia da civilização mediterrânea[viii]. Mas não é possível distinguir entre a realidade histórica e o panorama poético. A época mais provável das origens homéricas situa-se entre o século IX e o século VII antes da nossa era. Nas epopeias, a religião “pré-homérica” e – em parte – a civilização micênica estão já esquecidas. A racionalização acha-se tão adiantada que os gregos de todos os tempos podiam ler Homero sem deparar com primitivismos incompatíveis com os seus dias. Pouco depois, já era possível a Batracomiomaquia[ix], a primeira epopéia herói-cômica, descrição da guerra “homérica” das rãs e ratinhos, parodiando a Ilíada, sem ofender a majestade de Homero. Homero compreende tudo: sol e noite, tragédia e humor, universo grego inteiro, do qual é a bíblia e o cânone ideal. Cânone estético e religioso, pedagógico e político; uma realidade completa, mas não o reflexo imediato de uma realidade. Se Homero só fosse este reflexo, teria perdido toda a importância com a queda da civilização grega. Mas era já, para os gregos, uma imagem ideal; e não desapareceu nunca. O equilíbrio entre realismo e idealidade é o que confere aos poemas homéricos a vida eterna: a bíblia estética, religiosa e política dos gregos podia transformar-se em bíblia literária da civilização ocidental inteira.

 



[i] A primeira edição impressa das epopeias homéricas é a da Chalkondylos, Florença, 1488. Seguiram-se a Aldina, de 1504, a de Stephanus, de 1566, e inúmeras outras, até a edição crítica de Immanuel Bekker, 1858. A melhor edição moderna é a de Allen, 5 vols., Oxford, 1902/1912. As obras principais sobre Homero, além das citadas na discussão da “questão homérica”, são as seguintes:

K. Bréal: Pour mieux connaître Homère. 2ª ed. Paris, 1911.

K. Roth: Die Odyssee als Dichtung. Paderborn, 1914.

T. T. Sheppard: The Rise of the Greek Epic. Oxford, 1924.

E. Turolla: Saggio sulla Poesia di Omero. Bari, 1930.

W. I. Woodhouse: The Composition of Homer´s Odyssey. Oxford, 1930.

F. Robert: Homère. Paris, 1950.

E. M. Bowra: Heroic Poetry. Oxford, 1952.

[ii] M. Arnold: “On Translating Homer”, 1861. (In: Essays Literary and Critical, 1865.)

[iii] U. von Wilamowitz-Moellendorff: Die Ilias und Homer. Berlin, 1920.

U. von Wilamowitz-Moellendorff: Die Heimkehr des Odysseus. Berlin, 1927.

P. Cauer: Grundfragen der Homerkritik. 3ª ed. 2 vols. Leipzig, 1921/1923.

[iv] I. Van Leeuwen: Commentationes Homericae. Leyden, 1911.

E. Bethe: Homer. Dichtung und Sage. 3 vols. Leipzig, 1914/1927.

E. Drerup: Homerische Poetik. Wuerzburg, 1921.

C. M. Bowra: Tradition and Design in the Iliad. Oxford, 1930.

P. Von der Muehll: Der Dichter der Odyssee. Leipzig, 1940.

E. Howald: Der Dichter der Ilias. Zurich, 1946.

[v] E. Schwartz: Die Odyssee. Muenchen, 1924.

[vi] W. Jaeger: Paideia. Die Bildung des griechischen Menschen. Berlin, 1933.

[vii] A. Lang: The World of Homer. London, 1910.

W. Schadewaldt: Von Homers Welt und Werk. 2.ª ed. Stuttgart, 1951.

[viii] V. Bérard: Introduction à l’Odyssée. 2.ª ed. 2 vols. Paris, 1933.

[ix] A Batracomiomaquia foi atribuída ao poeta lendário Pigres. É provavelmente do século V antes da nossa era, embora a linguagem seja da época alexandrina (talvez versão posteriormente retocada). Edição por A. Ludwich, Leipzig, 1896.

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