O rebanho de Caeiro-Pessoa

 


O poeta português Fernando Pessoa (1888-1936) ficou conhecido como o poeta dos heterônimos. Segundo sua própria indicação, o mestre de todos eles foi Alberto Caeiro que, na poética pessoana, põe em relevo a alma pagã, naturalista, da simplicidade do homem comum, do campo, afeito ao cotidiano ritmado do fazer de plantas e animais e, talvez por isso, um desafeto das elaborações filosóficas e das ginásticas mentais "de quem, por não saber o que é olhar para as cousas,/ não compreende quem fala delas/ Com o modo de falar que reparar para elas ensina" (O guardador de rebanhos, V). Aos que, como eu, estão acostumados à metafísica e à filosofia, os versos de Caeiro põe abaixo qualquer pretensão de transcendência. É como termos reduzidas a pó as especulações permitidas pela linguagem, para ouvirmos falar algo outro, uma realidade nua e crua, pois "com filosofia não há árvores; há ideias apenas" (Poemas Inconjuntos, 1915-1919).

Desde logo, Caeiro se defende contra os que pretendem defini-lo como um poeta materialista: "uma vez chamaram-me poeta materialista,/ e eu admirei-me, porque não julgava/ que se me pudesse chamar qualquer coisa". Antes, "sou fácil definir./ Vi como um danado./ Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma. (...) Além disso, fui o único poeta da Natureza" (Poemas Inconjuntos, 1915-1919). Seus versos procuram traduzir aquela alegria da ingenuidade, a de uma criança que experimenta o mundo pela primeira vez, sem ter sido ainda vestida com os olhos da cultura. "A espantosa realidade das cousas/ É a minha descoberta de todos os dias". Contra a insistência desse revestimento que nos oprime pelo olhar enviesado do conhecimento e do pensamento, é preciso despir-se para se encontrar consigo e com a realidade do que existe e do que se é, "vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez do que conhecê-la". A lição do mestre Caeiro é, pois, a de saber ver e sentir o mundo, para sabermos, de fato, o que somos. Ouçamos dizer-nos o mundo.


O guardador de rebanhos, XLVI

Deste modo ou daquele modo,

Conforme calha ou não calha,

Podendo às vezes dizer o que penso,

E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,

Vou escrevendo os meus versos sem querer,

Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,

Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse

Como dar-me o sol de fora.

 

Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.

 

Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

 

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a Natureza produziu.

 

E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,

Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.

E assim escrevo, ora bem, ora mal,

Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,

Caindo aqui, levantando-me acolá,

Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.

 

Ainda assim, sou alguém.

Sou o Descobridor da Natureza.

Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.

Trago ao Universo um novo Universo

Porque trago ao Universo ele-próprio.

 

Isto sinto e isto escrevo

Perfeitamente sabedor e sem que não veja

Que são cinco horas do amanhecer

E que o Sol, que ainda não mostrou a cabeça

Por cima do muro do horizonte,

Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos

Agarrando o cimo do muro

Do horizonte cheio de montes baixos.


Eis uma amostra da torrente verborrágica com a qual Caeiro pretende nos arrastar. O acontecimento de sua poesia tira-nos do eixo, do envoltório de saber com o qual revestimos nossas experiências, da razão que elegemos como guia na travessia do rio da existência. Tal como um rio, existir é jamais ser o mesmo, e os erros e acertos pelos quais o poeta vai tecendo sua realidade para nós deve ser experimentado como se já não houvesse amanhã. Em suas palavras, perdemos a noção do tempo, também a noção de quem somos, perdemos as noções para mergulhar no sentir, na indescritível sensação de "sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito/ E lá fora um grande silêncio, como um deus que dorme" (XLIX). Com Caeiro, aprendemos as lições da sabedoria de Heráclito, para quem "não podemos entrar duas vezes no mesmo rio". Tudo muda, e "a recordação é uma traição à Natureza" (XLIII). A lição do rio em Heráclito é a mesma que as aves oferecem ao poeta: elas passam sem deixar rastros no chão, como o rebanho e as suas pegadas. "Nada torna, nada se repete, porque tudo é real" (Poemas Inconjuntos). 

Mas o que seriam, então, essas palavras, senão as pegadas de Caeiro pela vida? 

É preciso ter clara a força poética de Caeiro, para se entender sua lição. As palavras não são as coisas. Com palavras, temos ideias, tem-se metafísica. A realidade, porém, é cada coisa, e "cousa por cousa, o Mundo é mais certo". Em certo sentido, não há metafísica em Caeiro, ou antes, temos uma antifilosofia, que condena o indagar como doença e os pensamentos como ilusões: "mas por que me interrogo, se não porque estou doente?" É porque "vivemos antes de filosofar" que o poeta nos demove, pelos seus versos, a reduzir a palavras e ideias nossa existência, como se fôssemos essencialmente ideia e não vida. "Somos exterior essencialmente" (Poemas Inconjuntos). É o corpo, não a alma, que realiza o que somos. Se há versos e há palavras, Caeiro as justifica como uma sua traição: "porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes/ À sua estupidez de sentidos.../ Não concordo comigo, mas absolvo-me" (XXXI). Se os pensamentos são sintomas de um corpo febril, o poeta não se arroga para si a saúde que canta: "escrevi-as estando doente/ E por isso elas são naturais/ E concordam com aquilo que sinto" (XV). Como um guardador de rebanhos, a cuidar de suas ovelhas, saudáveis ou doentes, Caeiro tece para nós seus versos como um espelho, cujo reflexo mostra a mentira que há em nós. Em seu rebanho, o poeta se faz homem, doente e mentiroso, "porque me falta a simplicidade divina/ de ser todo só o meu exterior" (XIV).

Por isso, em Caeiro, até Deus se faz homem. As ideias basilares da metafísica filosófica escorrem entre os dedos que escrevem tais versos: 



O guardador de rebanhos, XXVI


A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe

Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.

Não significa nada. 

Então porque digo eu das coisas: são belas?

 

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,

Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens

Perante as coisas,

Perante as coisas que simplesmente existem.

 

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!




"Não ver senão o visível" é também, em suma, não ser senão visível, uma unidade com as coisas, afinal "sei que a verdade está nelas e em mim/ E na nossa comunhão divina" (XXXVI). Entendemos, desse modo, por que ele nos diz "eu não tenho filosofia, tenho sentidos" (II): sua poética é, no sacrifício de si, uma travessia até o mundo dos pensamentos humanos, da nossa excessiva racionalidade de tudo, a fim de retornar "ao homem verdadeiro e primitivo/ Que não via o Sol nascer e ainda o não adorava; Porque isso é natural" (XXXVIII). Se a antifilosofia de Alberto Caeiro expressa a torrente verborrágica que nos arrasta até sentirmos a vida pulsar outra vez em nós, apesar de todo sofrimento, para além de toda revolta, podemos dizer que a filosofia de seu rebanho, dos pensamentos que seus versos traem, se justifica como a filosofia mais necessária, aquela que não se exime de parecer poética e de se expor em versos, porque se reencontra com sua razão de ser no viver a única verdade e a maior das obras de arte: amar a Natureza "não como quem pensa, mas como quem respira" (XXXVI). Dos mais belos rebanhos que Caeiro nos legou, ficamos com estes versos que celebram a felicidade da vida que se encontra consigo mesma.



O guardador de rebanhos, IX

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.


Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

 

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.

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