Cinema - Notas sobre O poço



Antes de tudo, é preciso dizer que o filme O poço, do cineasta espanhol Galder Gaztelu-Urruti é uma obra de arte. Das melhores que o cinema já produziu. Anotem o nome desse diretor, ele ainda vai longe. Digo isso porque toda obra de arte, digna do nome, nos comove a ponto de nos levar a reagir com paixão. Vou escrever algo sobre minhas reações para quem já assisitu, de modo que se você ainda não viu o filme, está perdendo duplamente: pela obra e por não poder refletir junto aqui.

Muitos dizem que o filme é uma crítica ao capitalismo, mas isso seria reduzir grosseiramente a estética da obra. Ele é, antes, uma alegoria da condição humana. "Há os de cima, há os de baixo, e há os que caem". O que determina a situação de cada um é o seu nível de acesso à comida: ou você come ou é comido. A sociedade humana, reduzida em seus instintos, é uma selva. O tipo de prisão que O poço retrata é uma espécie de teste, ou um purgatório onde a sentença final corresponde mais à situação-limite na qual se é colocado do que algum alívio da culpa de seus pecados.

E com isso se apresenta a primeira e mais fundamental referência do filme à Divina Comédia, de Dante. Ao contrário do que pensa Karnal, ao analisar o filme, o poço não é o inferno, porque no inferno não há esperança. Composto de 333 níveis, dois prisioneiros em cada nível (um total de 666 prisioneiros: conhece esse número?), a comida desce por uma plataforma de maneira hierárquica: os de cima tem acesso à comida antes que os de baixo. Mas não há fixação de nível: a cada mês, pode-se acordar em qualquer outro nível, acima ou abaixo. Aos de baixo, a esperança é sobreviver para ter algum dia parte no banquete, e comer tudo o que puderem, como fazem os de cima, sem pensar nos demais. Os de cima, ao acordarem níveis abaixo em que nada chega para comer, lutam para se manterem vivos.

O protagonista Goreng, que pensa ter ingressado no poço por vontade própria (pode ser uma forma de ele justificar alguma ausência de culpa), encarna na trama um tipo de esperança idealista. É permitido levar algum objeto pessoal para a prisão, e Goreng leva um livro. Aqui vai a segunda referência fundamental do filme: Dom Quixote, de Cervantes. O cineasta, que é espanhol, brinca com a obra do maior de seus clássicos, naquilo que ela traz como sentido para gerações de leitores: a paródia sobre a loucura do idealismo de uma mente. Goreng, uma espécie de Quixote, acorda ao lado de um velho que lhe parece, óbvio, seu Sancho Pança. Mas nada é tão óbvio no filme, e o realismo do velho Trimagasi encarna a postura de quem já sofreu muito para acreditar em algo mais além da fria e crua lógica das coisas como elas são. 

A oposição implacável entre o ideal e o real é a mesma na qual está imersa a mulher que há anos procura a filha perdida, descendo entre os níveis como se fosse mais um prato para o banquete. Acreditam-na louca, porque nenhuma criança entra ali. A mulher, porém, mostra-se implacável em sua tarefa de fazer a filha sobreviver, e ela mostra, para Goreng, que a única forma de acabar com a lógica daquele lugar é se tornando alguém que desce. Só há três tipos de pessoas: as que descem são os inconformados com as coisas como elas são, porque no mundo humano não há coisas como elas são que permaneçam inalteradas. A esperança da mulher em salvar a filha símboliza, para o idealista Goreng, o resto de humanidade que há em meio à selvageria da vida.

Acreditando poder conscientizar os demais para não comerem além do necessário, o que permitiria sobrar algo para os níveis mais baixos, Goreng decide, do alto de seu 6 andar, descer até o fundo do poço, não porém como os suicidas, mas por sacrifício, na esperança de ele mesmo, e seu outro companheiro idealista, racionarem a comida até os níveis famintos. Para isso, será preciso defendê-la com unhas e dentes, matando os que se rebelarem se for necessário. Não tem escapatória: se a lógica do poço mata os de baixo pela fome, e pela loucura que ela provoca, a lógica racional de Goreng mata para poder realizar-se. O sentido da lógica assassina é preciso: não há como mudar a realidade humana sem mudar a natureza humana. E a selvageria, como parte da natureza humana, parece inescapavelmente imutável.

Mas há uma esperança. Se ao menos, diz um sábio, um prato de comida puder retornar para o nível 0 intocado, essa seria uma mensagem clara de que a humanidade tem salvação. Ao chegarem ao fundo do poço, Goreng e seu parceiro descobrem ali escondida a filha da mulher que entregou sua vida como comida para fazê-la sobreviver. Não há motivos para preservar mais um prato intocado. A própria criança, salva, deve se elevar até o nível 0 como resposta para ilustrar aquilo de que o ser humano é capaz. Em meio à selva dos instintos, aquela frágil humanidade pôde se conservar viva, e com ela se conserva a esperança que move qualquer saída do poço. É preciso ter o coração de uma criança para ser alguém que sobe.

Várias questões me ficaram em aberto, como afinal é toda reação a uma grande obra. Se o poço é um purgatório, é na vida que se pode chegar a alguma forma de redenção. O inferno, o fundo do poço, é lugar de escuridão e de morte. Mas seria a cozinha, de onde vem a comida pela qual matam e morrem os humanos, um símbolo do paraíso? De fato, o esforço dos cozinheiros para atingirem a perfeição nos leva a pensar a distância posta entre eles e o poço. Mas se a proximidade com a escuridão do Inferno revelam os níveis mais bestiais da condição humana, não dá pra dizer que os mais próximos da cozinha são os mais sensatos. Seria afinal o paraíso responsável pela fome que torna os homens o lobo dos homens?

Essas questões me levam a imaginar que, em último caso, não haveria distinção entre três realidades distintas, mas apenas uma: todas elas determinadas por mãos humanas. Nesse ponto, o fundo do poço se torna uma espécie de destino. Só os que descem podem ter a esperança de subir e conservar algo de valor. Uma mensagem, não para a cozinha, mas para as gerações futuras. A mensagem de que a vida vale a pena se ela tiver um propósito. O sacrifício para salvar a criança deixa para nós uma mensagem: se não pudermos descer até a mais profunda escuridão, não chegaremos jamais a ver a luz.

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