Virginia Woolf - Carta a um jovem poeta



Numa Carta a um jovem poeta, a genial escritora inglesa Virginia Woolf apresenta o que para nós, sobretudo em nosso tempo, corresponde ao melhor conselho aos artistas da palavra: traduzir intensamente a emoção vivida em palavras, sem se importar com fama ou com publicações. Sobretudo para nós porque hoje vivemos uma avalanche de meios de exposição, e com isso, parece, perdemos o sentido da vida poética. Pois é preciso viver a poesia, e como a poesia nasce da beleza que o autor é capaz de apreender do mundo ao redor e de si mesmo, faz-se preciso antes de tudo viver essa emoção intensa que a beleza provoca. E como é à abertura nascida dessa emoção pela beleza aquilo a que o poeta deseja provocar seus leitores, é preciso não estar fechado em si mesmo para expressá-la intensamente.

A preocupação do jovem que lhe pede conselhos sobre poesia encontra-se na desilusão de sua época. A poesia dá sinais de estar morta. Por todos os cantos, o que se escuta é um mundo demasiadamente prosaico, tecnológico e científico. Um poeta numa época assim parece desprovido da substância de sua poesia, aquela emoção à flor da pele, aquela vida que de dentro de si pulsa para contagiar seus ouvintes e leitores. Só que isso é um engano, dirá Virginia. O que morreu não foi a poesia, mas o sentido de fazê-la. E perder o sentido de se fazer poesia é deixar, no fim das contas, de ser e de sentir o mundo como um poeta.

Perder, afinal, o sentido de se fazer poesia é perder o ritmo que harmoniza o escritor com a emoção de sentir no mundo os ares daquela beleza sedutora. Os poetas atuais se perdem, segundo Virginia Woolf, quando isolam seu eu de todos os demais, numa espécie de literatura narcisista que não mais procura estabelecer pontes e laços na direção dos demais seres humanos, mas que se fecham em seu próprio universo de sensações e de imagens, absolutamente suas e de ninguém mais. Nas palavras de Virginia, o problema atual está em que

o ‘eu’ que se compromete a descrever está distante de tudo isso. É um ‘eu’ que se senta sozinho, à noite, no quarto, com as cortinas fechadas. Por outras palavras, o poeta está muito menos interessado naquilo que temos em comum do que naquilo que o distingue.

Costuma-se dizer que nossa época, pois em parte o século XX de Virginia ainda é o nosso, matou a poesia; que a ciência e a tecnologia tornaram impossível uma vida pelos instintos; se não impossível, certamente indigna. Não há mais aquele fôlego religioso, tudo passa a ser tumultuoso e sem sentido. Uma época niilista é uma época necrófila, que senta sobre o túmulo dos clássicos sem deles trazer a vida que deve pulsar em nosso peito. O desafio da poesia é fazer vivos os clássicos, de uma vida que já não é a deles apenas, mas sobretudo a nossa. Faz-se preciso, aos jovens decididos a se entregarem à poesia, que se entreguem antes a si mesmos: eis a lição. É preciso deixar vazar as emoções, as amarguras e os prazeres, como a ferirem o papel com versos duros, não sem depois adorná-los com a ternura e os afetos da serenidade. É preciso sentir a vida oscilar em sua caótica emotividade, não para se reservar a um mundo de isolamento niilista, e sim para estabelecer com os demais a identificação e a sintonia que faz da poesia o ambiente mais propício para a educação.

Que esse falar aos demais, no entanto, não seja motivado por um desejo inquieto pela fama. Ao terminar sua carta ao jovem aspirante à poeta, Virginia Woolf se mostra taxativa em seu conselho: não publique nada antes dos trinta anos. Porque é preciso, em meio ao caos de si, encontrar a própria voz, a sintonia entre o eu e os outros, a arte que faz rejuvenescer os clássicos e não simplesmente copiá-los. Tal como na filosofia, que também é uma arte, não podemos nos deixar guiar nem por um espírito de necrofilia e de cópia do que já foi pensado, nem por um anseio imbecil de fazer tudo novo, como se a originalidade viesse da completa rendição da palavra ao universo pessoal do autor. Poesia é sempre abertura, é vida e beleza transpostas e despertadas em palavras. Jamais se render ao anseio da fama é conservar a intensidade que brota da emoção pela qual nossos leitores e ouvintes se aventuram com o prazer da poesia. O aspirante à poeta não deveria desviar os olhos desse conselho final de Virginia Woolf.

Mas se publicar, a sua liberdade estará em perigo; ficará a pensar no que as pessoas vão dizer; escreverá para os outros quando devia escrever apenas para si próprio. E que sentido tem conter a torrente selvagem de absurdos espontâneos que são agora, e vão ser durante alguns anos, uma dádiva divina, apenas para publicar pequenos livros preciosos de versos experimentais? Para ganhar dinheiro? Isso, como sabemos, está fora de questão. Para ser criticado? Mas os seus amigos atacarão os manuscritos com críticas muito mais sérias e profundas do que aquelas que receberia de qualquer crítico. Quanto à fama, olhe, imploro-lhe, para as pessoas famosas; veja como as águas da monotonia se espalham em torno delas assim que entram; observe a sua pomposidade, os seus ares proféticos; tome consciência que os grandes poetas foram anônimos; pense como Shakespeare desdenhou a fama; como Donne atirou os seus poemas para o caixote do lixo; escreva um ensaio dando um único exemplo de um escritor inglês moderno que tenha sobrevivido aos discípulos e admiradores, aos caçadores de autógrafos e entrevistadores, a jantares e almoços, a celebrações e comemorações com as quais a sociedade inglesa cala tão eficazmente a boca dos seus cantores e silencia os seus cantos.


Edição: Cosacnaify


Texto da Carta
[Tradução e notas de Leonardo Fróes]


CARTA A UM JOVEM POETA 

Meu caro John, [1] Você chegou a conhecer, ou terá sido antes de seu tempo, aquele senhor idoso – cujo nome esqueci – que costumava animar a conversa, especialmente na hora do café, quando o carteiro chegava, dizendo que a arte da correspondência estava morta? Foi o próprio correio, dizia o velho, com as tarifas reduzidas, que matou essa arte. Nem para cortar seus tês, continuava ele, ajeitando os óculos ao examinar um envelope, ninguém mais tem tempo. Corremos, acrescentava, passando geleia na torrada, para o telefone. Confiamos nossos pensamentos ainda em formação, em frases gramaticalmente incorretas, ao cartão-postal. Thomas Gray está morto, prosseguia o homem; Horace Walpole está morto; Mme de Sévigné – também está morta, suponho que ainda fosse dizer, mas nisso ele se engasgou de repente e teve de sair da sala, sem tempo para condenar todas as artes, prazer bem dele, ao cemitério. Hoje de manhã, quando o correio chegou e eu abri sua carta, cheia de folhinhas azuis totalmente cobertas por uma letra apertada porém não ilegível – lamento dizer contudo que havia vários tês sem cortar e que a gramática de uma frase me pareceu discutível –, eu afinal respondi, depois de todos esses anos, àquele velho necrófilo: Bobagem. A arte da correspondência mal começa a existir em nossos dias, e é filha do correio com tarifas mais baixas. Penso que há um pouco de verdade nessa observação. Naturalmente, a carta enviada, quando custava meia coroa, tinha de provar-se um documento de certa importância; era lida em voz alta; era amarrada com uma fita de seda verde; após determinado número de anos, era publicada para o infinito deleite da posteridade. Mas sua carta, pelo contrário, terá de ser queimada. Como saiu por uma bagatela mandá-la, [2] você pôde se permitir ser íntimo, sem reservas, indiscreto ao extremo. O que me conta sobre o nosso querido e pobre C. e a aventura que ele viveu no barco do Canal é absolutamente privado; seus gracejos irreverentes à custa de M. com certeza arruinariam a amizade entre vocês se corressem por aí; duvido também que a posteridade, a não ser que ela seja muito mais rápida de cabeça do que espero, pudesse seguir a linha de seu pensamento, a partir do teto que pinga (“pim, pim, pim, bem em cima da saboneteira”) e passando pela sra. Gape, a empregada, cuja resposta ao verdureiro causame o mais raro prazer, via Miss Curtis e sua estranha confiança nos degraus do ônibus para chegar aos gatos siameses (“Minha tia diz para enfiar uma meia velha no focinho, se eles miarem muito”); e ir daí ao valor das críticas para um escritor; daí a Donne; a Gerard Hopkins; a lápides em túmulos; a peixes dourados; e então, numa virada brusca e alarmante, a esta demanda: “Escreva-me e diga-me para onde vai a poesia, ou ela está morta?”. Não, a sua carta, por ser assim tão autêntica – uma carta que nem pode ser lida agora em voz alta, nem impressa no futuro –, terá de ser queimada. Que a posteridade se contente com Walpole e Mme de Sévigné. A grande era da correspondência, que naturalmente é o presente, não deixará cartas para trás. Eu, ao dar minha resposta, dou com apenas uma pergunta que posso responder ou tentar responder em público; sobre a poesia e a morte da poesia. 

Mas, antes de começar, devo reconhecer os defeitos, inatos ou adquiridos, que, como você constatará, distorcem e invalidam tudo o que eu tenha a dizer sobre poesia. A falta de uma sólida formação universitária sempre me tornou impossível estabelecer distinção entre um iâmbico e um dáctilo e, como se isso não bastasse para condenar alguém para sempre, a prática da prosa gerou em mim, como na maioria dos prosadores, um ciúme tolo, uma indignação justificada – uma emoção qualquer, seja lá qual for, de que o crítico deveria estar isento. Pois como pode alguém, nós, os desprezados prosadores, perguntamos quando nos encontramos, dizer o que pretende sendo fiel às regras da poesia? Imagine você ter de introduzir uma “poça” para corresponder à “moça” mencionada antes; ou emparelhar “dor” e “penhor”. A rima não somente é infantil como também desonesta, nós, os prosadores, dizemos. E depois dizemos mais: Vejam só as regras deles! Como é fácil ser poeta! Como é estreito e estrito o caminho que seguem! Isso você deve fazer; mas aquilo não pode. Eu preferia ser criança e andar em fila numa viela de subúrbio a escrever poesia, já ouvi prosadores dizendo isso. Deve ser como tomar o véu e entrar para uma ordem religiosa – essa obediência aos ritos e rigores do metro. E isso explica por que eles vivem sempre repetindo a mesma coisa. Já nós, os prosadores (só estou lhe falando do tipo de bobagem que os prosadores dizem quando estão entre si), somos mestres da língua, não seus escravos; ninguém pode nos ensinar; ninguém pode nos coagir; dizemos o que é nossa intenção dizer; e é a vida como um todo que temos por nosso território. Somos os criadores, os exploradores… E assim prosseguimos – de modo muito insensato, devo admitir. 

Prossigamos então nós, agora que já fiz minha confissão dessas deficiências. Deduzo de certas frases de sua carta que você pensa que a poesia envereda por um caminho horroroso e que a sua situação como poeta, neste específico outono de 1931, é muito mais difícil do que foi a de Shakespeare, Dryden, Pope ou Tennyson. De fato é a situação mais difícil de que já se teve notícia. E aqui você me abre um espaço, que não deixarei de aproveitar, para uma pequena lição. Nunca se tome por único, nunca pense que a sua situação é muito pior que a dos outros. Admito que a época em que estamos vivendo torne as coisas difíceis. Pela primeira vez na história existem leitores – um grupo enorme de pessoas que se ocupam de negócios, de esportes, de cuidar dos avós, de amarrar embrulhos atrás de balcões – e todos agora leem; querem que lhes digam como ler e o que ler; e seus orientadores – os resenhistas, os conferencistas, os homens do rádio – devem com toda a urbanidade lhes tornar a leitura fácil; garantir-lhes que a literatura é violenta e excitante; cheia de heróis e vilões; de forças hostis perpetuamente em conflito; de campos por onde ossos se espalham; de solitários vencedores de capa preta que cavalgam sobre cavalos brancos para encontrar a morte numa curva da estrada. Um tiro é disparado. “A era do romantismo acabou. Tinha começado a era do realismo” – você sabe como é esse tipo de coisa. Mas é claro que os próprios escritores também sabem muito bem que não há um pingo de verdade em tudo isso – não há batalhas, nem emboscadas, nem derrotas, nem vitórias. Porém, uma vez que distrair os leitores é de suprema importância, os escritores aquiescem. Vestem suas fantasias. Desempenham seus papéis. Um vai na frente; e o outro vem atrás. Um é romântico, o outro, realista. Um é avançado e o outro ultrapassado. Até aí nada de mau, enquanto você tomar isso por farsa; mas, se acreditar no enredo, se começar a se levar a sério como um líder, ou como um seguidor, como um moderno ou como um conservador, então você se transforma num animalzinho afetado que arranha e morde, mas cujo trabalho não tem nenhuma importância nem o menor valor para quem quer que seja. Pense em você, antes, como algo bem mais humilde e menos espetacular, mas a meu ver muito mais interessante – um poeta no qual vivem todos os poetas do passado e do qual hão de nascer todos os poetas do futuro. Em você há um toque de Chaucer, um pouco de Shakespeare; Dryden, Pope, Tennyson – para mencionar apenas, entre seus ancestrais, os respeitáveis – se agitam no seu sangue fazendo sua pena mover-se de vez em quando, para a direita ou para a esquerda. Você em suma é um tipo imensamente antigo, complexo e contínuo, razão pela qual, por favor, trate-se com respeito e pense duas vezes antes de se fantasiar de Guy Fawkes [3] para pular pelas esquinas sobre velhinhas tímidas, pedindo uns trocados e ameaçando-as de morte. 

Todavia, como você diz que está numa crise (“nunca foi tão difícil escrever poesia como hoje”), permita-me gastar um pouco de tempo, antes da hora do correio, imaginando seu estado e me arriscando a uma ou duas suposições que, como isto é uma carta, não precisam ser levadas muito a sério nem ter grande premência. Permita-me que eu tente me pôr em seu lugar; que eu tente imaginar, com sua carta me ajudando, o que é sentir-se como um jovem poeta no outono de 1931. (Levando à prática meu próprio conselho, não o tratarei como um poeta em particular, mas como vários poetas congregados num só.) Assim sendo, a batida perpétua do ritmo – não é isso o que o faz poeta? – soa no chão da sua mente. Parece às vezes reduzir-se a nada; deixa que você coma, durma e converse como os outros. Mas depois ela volta e aumenta e avança e tenta arrastar todos os conteúdos da sua mente para uma dança dominante. É esta noite a ocasião. Apesar de você estar sozinho, de ter tirado um sapato e já estar quase tirando o outro, não consegue ir adiante no processo de despir-se, porque, por imposição da dança, na mesma hora você tem de escrever. Pega pena e papel; nem se preocupa em desamassar este ou segurar aquela com firmeza. E, enquanto você escreve, enquanto as primeiras estrofes vão sendo fixadas, eu me afastarei um pouco para ir à janela dar uma olhada. Passa uma mulher, depois um homem; um carro reduz até parar e aí – mas nem é preciso dizer o que estou vendo pela janela, nem há tempo para isso, porque de súbito sou interrompida em minhas observações por um grito de desespero ou de raiva. Sua página virou uma bola amarrotada; sua pena, ereta, treme atirada de ponta no tapete. Se houvesse aqui um gato para sacudir, ou uma mulher para matar, agora seria a hora. Ao menos é o que eu deduzo, pela ferocidade de sua expressão. Irritado, agitado, você está totalmente fora de controle. E, se eu pudesse adivinhar a razão, diria que o ritmo – que se abria e fechava com uma força que enviava choques de excitação de sua cabeça até os calcanhares – foi de encontro a algum objeto duro e hostil contra o qual se fez em pedaços. Algo começou a atuar que não pode ser transformado em poesia; algum corpo estranho, anguloso, pontudo, áspero, recusou-se a entrar na dança. Evidentemente a suspeita aponta para a sra. Gape, que tinha lhe pedido que escrevesse um poema sobre ela; depois para Miss Curtis e suas confidências no ônibus; e por fim para C., que o contagiou com um desejo de contar a história dele – por sinal bem divertida – em versos. Mas por alguma razão você não pode atender a esses pedidos. Chaucer poderia; Shakespeare poderia; como também Crabbe, Byron e até talvez Robert Browning. Mas estamos em outubro de 1931, e não é de hoje que a poesia vem se esquivando ao contato com – como vamos chamá-la? Abreviada e sem dúvida inacuradamente vamos chamá-la de vida? E virá você em minha ajuda, entendendo o que eu quero dizer? Pois então; foi isso, e não é pouco, o que a poesia deixou para o romancista. Por aí você vê como seria fácil para mim escrever dois ou três volumes para louvar a prosa e escarnecer do verso; dizer como são amplos e abertos os domínios de uma, enquanto o pequeno bosque do outro, não se desenvolvendo, definha. Mas para conferir essas teorias seria mais simples e talvez mais justo abrir um dos finos livros de poesia moderna que estão em sua mesa. Faço-o e na mesma hora me vejo desmentida. Aqui estão os objetos comuns da prosa cotidiana – a bicicleta e o ônibus. É óbvio que o poeta está fazendo sua musa encarar os fatos. Ouça:

Which of you waking early and watching daybreak 
Will not hasten in heart, handsome, aware of wonder 
At light unleashed, advancing, a leader or movement, 
Breaking like surf on turf on road and roof, 
Or chasing shadow on downs like whippet racing, 
The stilled stone, halting at eyelash barrier, 
Enforcing in face a profile, marks of misuse, 
Beating impatient and importunate on boudoir shutters 
Where the old life is not up yet, with rays 
Exploring through rotting floor a dismantled mill 
– The old life never to be born again?[4] 

Sim, mas como ele conseguirá fazer isso? Leio mais e descubro: 

Whistling as he shuts 
His door behind him, travelling to work by tube 
Or walking to the park to it to ease the bowels,[5] 

e leio mais e outra vez descubro: 

As a boy lately come up from country to town 
Returns for the day to his village in expensive shoes.[6] 

e ainda mais uma vez: 

Seeking a heaven on earth he chases his shadow, 
Loses his capital and his nerve in pursuing 
What yachtsmen, explorers, climbers and buggers are after.[7] 

Esses versos e as palavras que coloquei em destaque bastam-me para confirmar ao menos em parte minhas suposições. O poeta está tentando incluir a sra. Gape. Honestamente ele é de opinião de que ela pode ser trazida à poesia, onde se sairá muito bem. Ele sente que a poesia há de ser incrementada pelo que acontece, o coloquial. Mas, embora eu o louve pela tentativa, duvido que esteja tendo muito êxito. Sinto uma dissonância. Sinto um choque. Sinto-me como se tivesse dado uma topada com o pé na quina do guarda-roupa. Estarei então, logo pergunto, de maneira pudica e convencional, chocada pelas próprias palavras? Penso que não. O choque é literalmente um choque. O poeta se esforçou um pouco demais, a meu ver, para incluir uma emoção que não está domesticada e aclimatada à poesia; e o esforço o fez perder o equilíbrio; ele se endireita, como tenho certeza de que irei constatar quando eu virar a página, por um recurso violento ao poético – invocando o rouxinol ou a lua. Seja como for, a transição é cortante. O poema é rachado ao meio. Veja, o poema se desfaz em pedaços em minhas mãos: aqui está, de um lado, a realidade, e aqui, de outro, a beleza; e eu, em vez de passar a ter um objeto arredondado e inteiro, nada tenho nas mãos senão um monte de cacos que eu, já que minha razão foi despertada e a imaginação não teve consentimento para se apoderar por completo de mim, contemplo com frieza, criticamente, e com desgosto. 

Tal pelo menos é a análise apressada que faço de minhas impressões de leitora; mas já fui interrompida de novo. Vejo que você superou sua dificuldade, fosse ela qual fosse; a pena voltou à ação e, tendo rasgado o primeiro poema, você já trabalha em outro. Agora então, se eu quiser entender o seu estado de espírito, tenho de inventar outra explicação para justificar esse retorno à fluência. Você dispensou, assim suponho, todas aquelas coisas que lhe viriam naturalmente à pena se estivesse escrevendo em prosa – a empregada, o ônibus, o incidente no barco do Canal. Seu raio de ação é limitado – julgo pela sua expressão –, concentrado e intensificado. Arrisco o palpite de que agora você esteja pensando, não nas coisas em geral, mas em você mesmo em particular. Há uma fixidez, uma melancolia, e também um brilho interno, que parecem sugerir que está olhando para dentro, não para fora. Mas, a fim de consolidar essas frágeis suposições sobre o significado de uma expressão em seu rosto, permita-me abrir outro dos livros em sua mesa e conferir isso pelo que eu lá encontrar. Abro-o, de novo ao acaso, e eis o que leio: 

To penetrate that room is my desire, 
The extreme attic of the mind, that lies 
Just beyond the last bend in the corridor. 
Writing I do it. Phrases, poems are keys. 
Loving’s another way (but not so sure). 
A fire’s in there, I think, there’s truth at last 
Deep in a lumber chest. Sometimes I’m near, 
But draughts puff out the matches, and I’m lost. 
Sometimes I’m lucky, find a key to turn, 
Open an inch or two – but always then 
A bell rings, someone calls, or cries of “fire” 
Arrest my hand when nothing’s known or seen, 
And running down the stairs again I mourn.[8] 

E depois isto: 

There is a dark room, 
The locked and shuttered womb, 
Where negative’s made positive. 
Another dark room, 
The blind and bolted tomb, 
Where positive changes to negative. 
We may not undo that or escape this, who 
Have birth and death coiled in our bones, 
Nothing we can do 
Will sweeten the real rue, 
That we begin, and end, with groans.[9] 

Ou ainda isto: 

Never being, but always at the edge of Being, 
My head, like Death mask, is brought into the Sun. 
The shadow pointing finger across cheek, 
I move lips for tasting, I move hands for touching, 
But never am nearer than touching, 
Though the spirit leans outward for seeing. 
Observing rose, gold, eyes, an admired landscape, 
My senses record the act of wishing 
Wishing to be 
Rose, gold, landscape or another 
– Claiming fulfilment in the act of loving.[10] 

Como essas citações foram pinçadas ao acaso e no entanto já encontrei três poetas escrevendo sobre nada, a não ser talvez o próprio poeta, entendo ser grande a probabilidade de que você também esteja envolvido nessa mesma ocupação. Concluo que a personalidade não oferece impedimentos; ela, que se presta ao ritmo, entra na dança; aparentemente é mais fácil escrever um poema sobre si mesmo do que sobre qualquer outro assunto. Mas o que se quer dizer com “si mesmo”? Não é a personalidade que Wordsworth, Keats e Shelley descreveram – não é a pessoa que ama uma mulher, ou que odeia um tirano, ou que medita sobre o mistério do mundo. Não; a pessoa que você está envolvido em descrever fechou-se para tudo isso. É alguém sentado sozinho, num quarto à noite, com as cortinas puxadas. Noutras palavras, o poeta se interessa muito menos pelo que temos todos nós em comum do que por aquilo que ele tem à parte. Suponho que daí venha a extrema dificuldade desses poemas – e devo confessar que eu ficaria completamente embatucada para dizer por uma ou mesmo por duas ou três leituras o que esses poemas significam. O poeta está tentando descrever, com sinceridade e exatidão, um mundo que não tem existência, exceto num momento particular para uma pessoa em particular. E quanto mais sincero ele é, sendo fiel ao preciso contorno das rosas e repolhos do seu universo privado, mais intrigados deixa a nós, que num espírito indolente nos comprometemos a ver repolhos e rosas como eles são vistos, mais ou menos, pelos 26 passageiros nas janelas de um ônibus. Ele se esforça para descrever; e nós nos esforçamos para ver; ele agita sua tocha; e notamos um brilho de fagulhas. É excitante; é estimulante. Mas aquilo ali é uma árvore, nós perguntamos, ou é uma velha que está na beira da sarjeta amarrando o sapato? 

Pois bem, se no que estou dizendo houver uma dose de verdade – e se essa for que você não pode escrever sobre o real, o coloquial, a sra. Gape ou o barco do Canal ou a srta. Curtis no ônibus, sem submeter a máquina da poesia a um esforço, se você é levado, por conseguinte, a no seu íntimo contemplar paisagens e emoções, tendo de tornar visível para o mundo em geral o que você apenas pode ver, então seu caso é realmente difícil e a poesia, embora ainda respire, só consegue tomar fôlego em arfadas bruscas e curtas. Pense mesmo assim nos sintomas. Nem de longe são os sintomas da morte. A morte em literatura, e não preciso lhe dizer quantas vezes a literatura já morreu neste país ou naquele, chega de modo gracioso, fluente, calmo. As linhas deslizam com facilidade pelas trilhas habituais. Os velhos modelos são copiados com tal desenvoltura que, a não ser por isso, quase nos inclinamos a tomá-los por originais. Mas o que aqui ocorre é o exato contrário: aqui, na minha primeira citação, o poeta quebra sua máquina por querer entupi-la de fatos em bruto. Na segunda ele é ininteligível por causa de sua desesperada determinação de dizer a verdade sobre si mesmo. Não posso assim evitar de pensar que, embora você talvez esteja certo quando fala das dificuldades da época, está errado ao se desesperar. 

Não haverá, ai de nós, boas razões de esperança? Digo “ai de nós” porque nesse caso eu terei de dar as minhas, que estão fadadas a ser meio absurdas e por certo também a causar dor à grande e respeitabilíssima sociedade dos necrófilos – Peabody e seus congêneres – que preferem a morte à vida e agora mesmo se põem a entoar suas sagradas e cômodas palavras: Keats está morto, Shelley está morto, Byron está morto. Mas é tarde da noite: a necrofilia induz ao sono; os velhos senhores caíram dormindo sobre seus clássicos e, se o que estou para dizer adquirir um tom sanguíneo – eu que de minha parte não acredito em poetas morrendo; aqui neste quarto, Keats, Shelley e Byron estão vivos em você e você e você –, posso me consolar com a ideia de que a minha esperança não irá perturbar o ronco deles. Assim, para continuar, por que não deveria a poesia – agora que tão autenticamente ela se libertou dos restos de certas falsidades, dos destroços da grande era vitoriana, agora que com tanta sinceridade ela se entranhou na mente do poeta para verificar-lhe os contornos, obra de renovação que de quando em quando tem de ser feita e era decerto necessária, pois a má poesia é quase sempre consequência do esquecimento de si mesmo, tudo se torna distorcido e impuro se você perder de vista essa realidade central –, agora, dizia eu, que a poesia fez tudo isso, por que não deveria ela mais uma vez abrir os olhos, olhar pela janela e escrever sobre outras pessoas? Há duzentos ou trezentos anos você estava sempre escrevendo sobre outras pessoas. Personagens das espécies mais diversas e opostas se apinhavam em suas páginas – Hamlet, Cleópatra, Falstaff. Não íamos até você só pelo teatro e pelas sutilezas da condição humana, mas também o procurávamos, por incrível que isso possa parecer agora, para rir. Você nos fez rir às gargalhadas. Depois então, há não mais do que cem anos, você açoitava nossas hipocrisias, dava lambadas em nossas maluquices e se arrojava à mais brilhante das sátiras. Você era Byron, lembre-se; você escreveu o Don Juan. E também era Crabbe e tomou como tema os mais sórdidos detalhes da vida dos camponeses. Está claro portanto que você tem a capacidade inata de lidar com uma ampla variedade de assuntos; foi apenas uma necessidade temporária que o fez trancar-se assim neste quarto, sozinho consigo mesmo. 

Mas como sairá você daí para ir ao mundo dos outros? Se posso me arriscar ao palpite, este é o seu problema agora – encontrar a relação certa, agora que você já se conhece, entre a personalidade conhecida por você e o mundo externo. É um problema difícil. Nenhum poeta vivo, que eu saiba, o resolveu por completo. E há milhares de vozes profetizando desespero. A ciência, dizem, tornou a poesia impraticável; não há poesia nos carros a motor nem no telégrafo. E nós não temos religião. Tudo é tumultuoso e transitório. Dizem que por isso não pode haver nenhuma relação entre o poeta e a era presente. Mas decerto é um contrassenso. Esses acidentes são superficiais; não vão assim tão a fundo para destruir o mais recôndito e primitivo dos instintos, o instinto do ritmo. Você agora não precisa senão plantar-se à janela e deixar seu sentido rítmico se abrir e fechar, se abrir e fechar livre e ousadamente, até que uma coisa se dissolva em outra, até que os táxis comecem a dançar com os narcisos e de todos esses fragmentos à parte se faça um todo. Bem sei que estou falando bobagem. O que quero é exortá-lo a apelar para toda a sua coragem, a exercer extrema vigilância, a invocar todos os dons que a Natureza foi induzida a conferir, e então deixar que seu sentido rítmico se infiltre e se enrosque entre mulheres e homens, entre pardais e ônibus – entre o que quer que seja que vem aí pela rua – até tê-los amarrado juntos num todo harmonioso. Esta é talvez a sua tarefa – encontrar a relação entre coisas que parecem incompatíveis e no entanto têm uma misteriosa afinidade, destemidamente absorver cada experiência que surja em seu caminho e dela se impregnar por completo, para que seu poema seja um todo, não um fragmento; repensar a vida humana em poesia e assim voltar a nos dar tragédia e comédia por intermédio de personagens, não de longa tessitura, à maneira do romancista, mas sim condensados e sintetizados à maneira do poeta – é isso o que esperamos que você faça agora. Mas como eu mesma não sei o que entendo por ritmo nem o que entendo por vida, e como com a mais completa certeza não consigo lhe dizer que objetos podem ser combinados com acerto num poema – o que aliás é um problema inteiramente seu –, nem sei distinguir um iâmbico de um dáctilo, sendo por conseguinte incapaz de lhe dizer como você deve modificar e expandir os ritos e cerimônias de sua arte antiga e misteriosa – vou me mover para terreno mais seguro e dar mais uma vez atenção a esses pequenos livros. 

Quando a eles retorno, como admiti, não estou repleta de prenúncios de morte, mas sim de esperanças quanto ao futuro. Só que nem sempre queremos estar pensando no futuro, se, como às vezes acontece, é no presente que vivemos. Quando eu leio esses poemas, agora, no presente momento, sinto-me – ler, como você sabe, é um pouco como abrir a porta para uma horda de rebeldes que investe nos atacando em vinte flancos ao mesmo tempo – atingida, arranhada, enfurecida, desnudada e atirada pelos ares, como se a vida explodisse enquanto passa; depois de novo às escuras, com uma pancada na cabeça – sensações que são agradáveis, todas elas, para um leitor (uma vez que não há nada mais sem graça do que abrir a porta e não obter resposta), sendo ademais a prova indiscutível, como eu acredito, de que o poeta está vivo e esperneia. Entretanto, misturando-se com todos esses gritos de júbilo, de deleite, também registro, enquanto leio, a repetição em voz baixa de uma palavra entoada sem descanso por algum descontente. Por fim então, calando os outros, digo eu a esse descontente: “Pois bem, e o que é que você quer?”. Ao que logo ele retruca, para o meu ligeiro embaraço: “Beleza”. Não me responsabilizo, permita-me dizer, pelo que os meus sentidos dizem quando estou lendo; simplesmente registro o fato de haver um descontente em mim que se queixa de a ele parecer estranho, tendo em vista que o inglês é uma língua mista, uma língua rica – uma língua incomparável quanto ao som e à cor por seu poder de sugestão e construção de imagens –, de a ele parecer estranho que esses poetas modernos viessem a escrever como se não tivessem olhos nem ouvidos, nem sola nos pés nem palma nas mãos, mas apenas cérebro íntegro e empreendedor alimentado por livros, corpo unissexual e – mas aqui o interrompo. Porque quando se chega a dizer que um poeta deveria ser bissexual, e acho que é isso que ele estava quase dizendo, mesmo eu, que nunca tive nenhuma formação científica, traço o limite e digo àquela voz que se cale. 

Mas até que ponto, se descontarmos esses óbvios absurdos, você acha que há verdade na queixa? De minha parte, agora que parei de ler e já posso ver os poemas mais ou menos como um todo, penso ser verdade que o olho e o ouvido tiveram seus direitos postos à míngua. Não há noção de bens deixados em reserva por trás da exatidão admirável dos versos que eu citei, como há, por exemplo, por trás da exatidão de Yeats. O poeta se agarra à palavra, à sua única palavra, como à boia se agarra alguém que está se afogando. Se for assim, estou ainda mais pronta a admitir uma provável razão para isso tudo porque penso que aí logo se põe em relevo justamente o que eu estava dizendo. A arte de escrever, e é isso talvez o que o meu descontente quer dizer com “beleza”, a arte de ter na ponta do bico e ao dispor cada palavra da língua, de saber quanto elas pesam, conhecer suas cores, sons, associações e assim fazê-las sugerir, como em inglês é tão necessário, mais do que elas podem dizer, naturalmente pode ser aprendida, até certo ponto, pela leitura – é impossível ler demais; mas de modo bem mais drástico e eficaz pode fazê-lo quando a gente imagina que não é quem pensa ser, mas alguém diferente. Como você vai aprender a escrever, se escrever apenas sobre uma mesma pessoa? Para trazer à baila o exemplo óbvio, você duvida que a razão de Shakespeare conhecer todos os sons e sílabas da língua, e poder fazer exatamente o que ele queria com a sintaxe e a gramática, era que Hamlet, Falstaff e Cleópatra o impeliram a esse conhecimento; que os lordes, oficiais, dependentes, assassinos e soldados comuns das peças insistiram para que ele dissesse com precisão o que sentiam nas palavras que expressam os sentimentos deles? Foram eles que o ensinaram a escrever, e não o motivador dos Sonetos. Assim, se você quiser satisfazer a todos esses sentidos que se levantam em enxame, sempre que nós deixamos um poema cair no meio deles – a razão, a imaginação, os olhos, os ouvidos, a palma das mãos e a sola dos pés, para não mencionar mais um milhão que os psicólogos ainda têm de nomear –, será bom para você embarcar num longo poema em que pessoas tão diferentes de você quanto possível falem do topo de suas vozes. E não publique nada, pelo amor de Deus, antes dos trinta anos. 

Tenho certeza de que isso é da maior importância. Nos poemas que andei lendo, quase todos os defeitos podem ser explicados, penso eu, pelo fato de eles terem sido expostos à luz violenta da publicidade quando eram ainda muito jovens para aguentar o impacto. Isso os engessou numa austeridade esquelética, tanto emocional quanto verbal, que não deveria ser característica de juventude. O poeta escreve muito bem; e escreve para o olhar de um público inteligente e rigoroso; mas quão melhor seria o que escreveu se por dez anos não tivesse escrito senão para um olhar, o dele mesmo! Afinal, entre os vinte e os trinta anos vivemos numa idade (mais uma vez me reporto à sua carta) de excitação emocional. Gotas de chuva, uma asa batendo, alguém que passa – os sons e as visões mais comuns têm o poder de nos lançar dos cimos do êxtase, como pareço me lembrar, ao fundo do desespero. E, se a vida real é assim tão extremada, a vida visionária deve seguir livre. Escreva então, já que você ainda é jovem, resmas e resmas de bobagens. Seja sentimental, seja tolo, imite Shelley, imite Samuel Smiles; [11] dê rédea solta aos impulsos; cometa qualquer erro de estilo, gramática, sintaxe e gosto; derrame-se; faça piruetas; libere raiva, amor e sátira nas palavras, sejam elas quais forem, que você puder agarrar, criar ou coagir, em seja lá qual for o metro, poesia, prosa ou verborragia que venha à mão. Você assim aprenderá a escrever. Mas, se publicar, sua liberdade será contida; você vai pensar no que as pessoas vão dizer; escreverá para os outros, quando deveria estar escrevendo somente para você mesmo. E que sentido pode haver em refrear a impetuosa torrente de contrassenso espontâneo que agora é o seu dom divino, por poucos anos apenas, a fim de publicar primorosos livrinhos de versos experimentais? Para ganhar dinheiro? Bem, isso, como nós dois sabemos, nem entra em cogitações. Para receber críticas? Mas seus amigos hão de olhar seus manuscritos com críticas mais penetrantes e sérias que qualquer uma que os resenhistas lhe fizerem. No tocante à fama, imploro-lhe que olhe para as pessoas famosas; veja como as águas da apatia, quando elas entram, se esparramam em torno; observe quanta pomposidade, e que ares proféticos; reflita que os maiores poetas viveram no anonimato; lembre-se de que Shakespeare nunca ligou para a fama; de que Donne amarrotava seus poemas para atirá-los na cesta de papéis; escreva um ensaio dando um único exemplo de qualquer escritor inglês moderno que tenha sobrevivido aos discípulos e aos admiradores, aos entrevistadores e aos caçadores de autógrafos, aos jantares e aos almoços, às celebrações e às comemorações com que tão eficazmente a sociedade inglesa tapa a boca de seus cantores e lhes silencia as canções. 

Mas basta disso. Eu, de qualquer modo, recuso-me a ser necrófila. Enquanto você e você e você, veneráveis e antigos representantes de Safo, Shakespeare e Shelley, estão exatamente aos 23 anos e se propõem – Oh!, que sorte invejável! – passar os próximos cinquenta de sua vida escrevendo poesia, recuso-me a pensar que a arte esteja morta. E se algum dia a tentação da necrofilia o assediar, lembre-se do destino daquele velho senhor cujo nome esqueci, mas que eu acho que era Peabody. No próprio ato de condenar todas as artes ao túmulo, ele engasgava com um pedaço de torrada quente com manteiga, e o consolo que então lhe ofereciam, de que já ia se juntar a Plínio, o Velho, nas trevas, não lhe dava, pelo que me dizem, nenhuma espécie de satisfação. 

E agora, no tocante aos trechos íntimos, indiscretos, os únicos de fato interessantes desta carta… 

[FIM]

Publicado pela primeira vez no número de jul. 1932 da Yale Review. No mês seguinte, saiu em forma de plaquete pela Hogarth Press. 

[1] A carta é para John Lehmann (1907-87), que trabalhou na Hogarth Press, pela qual publicou seu primeiro livro de poemas, e narrou suas memórias do casal Leonard e Virginia Woolf em livros como Thrown to the Woolfs (1978). 
[2] Para facilitar a comunicação, pagava-se o mínimo possível por cartas dentro da Grã-Bretanha no período entre as duas grandes guerras na Europa. 
[3] Guy Fawkes (1570-1606), conspirador cujo fracasso em explodir o Parlamento inglês passou a ser anualmente relembrado desde 5 nov. 1605. 
[4] “Qual de vocês que caminha cedo e vê o nascer do dia/ Não sentirá o coração bater mais depressa, ciente da maravilha,/ Da luz desatada, que avança, um líder do movimento,/ Como onda quebrando em grama sobre trilha e telhado,/ Ou atrás de sombra em ladeiras como cachorro correndo,/ A pedra parada, detendo-se na barreira do cílio,/ Impõe em face um perfil, marcas de abuso,/ E bate impaciente e importuna em cortinas de alcova,/ Onde a velha vida não acordou ainda, com raios/ Que exploram pelo soalho podre um desmantelado moinho/ A velha vida jamais renascerá?” 
[5] “Assobiando enquanto fecha/ A porta atrás de si, indo trabalhar de metrô/ Ou andando até lá pelo parque para aliviar o intestino”. 
[6] “Quando um menino veio mais tarde do campo para a cidade/ E volta para passar um dia em sua aldeia em sapatos caros”. 
[7] “Procurando um céu na terra ele persegue sua sombra,/ Perde a calma e perde seu capital indo atrás/ Do que iatistas, alpinistas, exploradores e pervertidos buscam”. “Poem ii”, em Poems (1930), de W. H. Auden (1907-73). O poema deixou de figurar nas coletâneas posteriores do autor: Collected Shorter Poems, 1927-1957 (1966) e Collected Poems (1994). 
[8] “É meu desejo penetrar neste quarto / O sótão mais recluso da mente, que está / Logo depois da última curva do corredor. / Faço-o quando escrevo. Frases, poemas são chaves. / Amar também pode ser (mas não é tão seguro). / Lá há um fogo, penso, há enfim verdade / No fundo de uma arca de trastes. Às vezes chego perto, / Mas o vento sopra e apaga o fósforo, e me perco / Às vezes dou sorte, acho a chave que viro / Para abrir pequena fresta – mas sempre então / Um sino toca, alguém chama, ou gritos de ‘fogo’ / Travam-me a mão quando já nada se vê, nada se sabe, / E eu volto correndo escada abaixo, a me afligir”.“To Penetrate that Room”, poema de John Lehmann em New Signatures: Poems by Several Hands (1932), org. Michael Roberts. 
[9] “Existe um quarto escuro/ O útero fechado em clausura/ Onde o negativo é tornado positivo./ E um outro quarto escuro,/ A murada e lacrada sepultura,/ Onde o positivo vira negativo.// Não podemos escapar disso, nem o desfazer, nós que/ Nos ossos temos enrolados o nascer e a morte./ Nada do que pudermos/ Há de abrandar a dor real,/ Esse nosso começar e findar com gritos fortes”. “Poem xi”, em From Feathers to Iron (1931), de Cecil Day Lewis (1904-72). 
[10] “Nunca sendo, mas à beira do Ser, / Minha cabeça, como máscara da Morte, é posta ao Sol./ Dedo apontado da sombra sobre o rosto, / Mexo lábios que provem, mãos que toquem,/ Mas nunca eu mesmo vou além de tocar,/ Embora o espírito, fora de mim, se incline a olhar./ Observando rosa, ouro, olhos, uma admirada paisagem,/ Meus sentidos registram o ato de querer/ Querendo ser/ Rosa, ouro, paisagem, ou um outro –/ Clamando por completude no ato de amar”. “At the Edge of Being”, em Twenty Poems (1930), de Stephen Spender (1909-95). 
[11] Samuel Smiles (1812-1904), autor dedicado às reformas políticas e sociais, que fez grande sucesso com seu livro Self-Help, with Illustrations of Character and Conduct (1859).

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