Ésquilo - Prometeu Acorrentado
Ésquilo conseguiu em Prometeu acorrentado um efeito trágico decisivo, aquele que advém
de um dilema insuperável. E o dilema está em todos os integrantes da situação:
Prometeu roubou, juntamente com outras habilidades e capacidades, o fogo de
Zeus, o novo tirano celestial, para dá-lo aos homens. O dilema de Prometeu é
ter contrariado o governo de Zeus por amor aos homens (philoánthropos), e estar ciente de que seu erro lhe causaria uma
penalidade justa. Mas não é justo, dirá o coro das filhas de Oceano, que um
deus esteja assim a pagar uma pena eterna, tendo seu corpo desfigurado aos
olhos de todos, todo dia tendo sua carne outra vez recomposta para que os
abutres a comam outra vez. O ciclo da punição é vergonhoso. Não é justo, mas
poderia ser que o coro contrariasse as ordens de Zeus? O pai dos deuses é
dificilmente persuadido, e nem mesmo a disposição do próprio Oceano, de ir ter
com o irmão a fim de amenizar a pena de Prometeu, poderia demovê-lo. O dilema
de Oceano, disposto a ajudar em uma causa perdida, é amenizado pela recusa do
próprio Prometeu. De que vale se tornar suplicante
e imitar mulheres diante do poder de um governante arredio como Zeus? Mesmo
Hefesto, a quem o poder de Zeus incumbiu-o de prender o amigo Prometeu, teve de
arrefecer o seu incômodo por uma pena tão cruel.
De
todos esses dilemas, porém, o do espectador-leitor é deveras decisivo e
fundamental. A peça de Ésquilo nos constrange a entender a dicotomia que parece
pertencer ao poder exercido, sempre a transitar entre a firmeza da autoridade e
a justiça das penalidades. No fundo, Prometeu
acorrentado está a nos narrar o processo implicado na formação política das
sociedades humanas. E disso Protágoras, no diálogo platônico de mesmo nome, nos
oferece uma explicação: naquele mesmo instante em que os homens foram
agraciados pelos dons que lhes fizeram ser homens, incorreram em penalidade
junto à divindade. O governo dos deuses deve ser não só paralelo ao humano, mas
também superior a este, e caso isso não ocorra, a ira divina recai com suas
penalidades. Prometeu, que era amigo de Zeus e que o havia auxiliado a tomar o
poder de seu pai Cronos, é agora visto como seu inimigo por causa da amizade e
condescendência com os homens. Mudar a condição humana era contrariar as leis
da necessidade, um desacato contra o poder divino estabelecido. Ésquilo nos
lança bem ao centro desse dilema, quando nos faz constatar o destino trágico daquele
que havia sido nosso maior benfeitor.
Por
beneficiar os homens, Prometeu, um dos titãs, é condenado eternamente. Só um
novo levante contra o governo atual que leve à queda do tirânico Zeus poderia
libertá-lo de sua pena. Sob o atual governo, portanto, a penalidade permanece
sem possibilidade de ser evitada. A peça quase nos sugere que a possível
injustiça contra Prometeu, em ter salvado nossa espécie do fim a que Zeus nos
havia preparado, só será evitada por um levante que deponha o governo e o poder
de Zeus, tal como este havia feito a seu pai. Prometeu tem certeza de que isso
acontecerá: tal como ele havia presenciado a ascensão de três reis em
substituições por sucessivos levantes familiares, assim também virá da própria
ambição de Zeus o seu fim.
O
levante contra Zeus, no entanto, deve ser obra divina, não humana. Aos mortais
não é dado poder lutar contra o que está estabelecido, e mesmo as tékhnai são impotentes contra a ananké. O destino humano é o motivo
último de toda a contenda da peça. E o que está, afinal, estabelecido? Prometeu
favorece os mortais por estar descontente com o reinado tirânico de Zeus. O
primeiro a declará-lo tirânico é a própria personificação do Poder. É por isso
que Io, a única mortal presente na peça, traz em seu nome a interjeição da dor,
como se ela simbolizasse, por metonímia, a condição do sofrimento humano. A dor
de Io é a de ser cobiçada por Zeus, tendo por destino caminhar solitária para
escapar dos ciúmes da esposa de Zeus. Diante do sofrimento de Prometeu, no
entanto, Io se consola, e o filho que é gerado em seu ventre pelo
relacionamento com Zeus simboliza a esperança de ruína do pai tirano. Mas não
se pode contraditar o poder da justiça sem sofrer as consequências. Ésquilo nos
indica, pela condenação final ao Tártaro dos envolvidos na conspiração para
depor Zeus, que a justiça deve ser tão poderosa quanto a necessidade. A
condição humana, frente ao poder ambíguo da divindade, só poderá fugir ao
sofrimento se evitar a atitude de Prometeu.
A
reflexão, no entanto, permanece: como evitarmos a atitude de Prometeu, se o que
somos deriva daquilo mesmo que Prometeu fez por nós?
Edição: Iluminuras
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