Basílio da Gama - O Uraguai

Marquês de Pombal (Lisboa ao fundo). Pintura Louis van Loo, 1766.


São de fato preciosas as notas que se pode tomar quanto à vida de Basílio da Gama. Nascido em 1741 na cidade mineira hoje chamada Tiradentes, viveu até o ano de 1795 tendo visto acontecer a independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa, dois marcos da influência de ideias iluministas que Basílio tanto louvaria em Pombal, o marquês. Basílio também pôde ver a ascensão e a queda de Pombal, a personagem por trás de sua obra mais conhecida, de que iremos tratar aqui. Não se poderia diminuir sua influência sobre a vida de Basilio, em face do qual sua vida de formação jesuítica parece ter sido drasticamente modificada. Em termos de sua obra literária, poderíamos dizer: para melhor.


Com a expulsão dos jesuítas de Portugal (e por tabela, das colônias), Basílio percebe que o melhor é se retirar da ordem em que fez sua formação. O surpreendente da situação está em sua viagem à Roma durante os anos de 1762-64, em que se registra seu nome como pertencente à Arcádia Romana como abade, ou seja, de algum modo ainda ligado à Igreja. Mas de fato, como se verá em sua obra magna, a crítica ao caráter despótico e reacionário dos 'soldados' da Companhia de Jesus não nos deixa margem para duvidar de seu posicionamento, ao lado dos valores apregoados pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. Sob essa inspiração, poética e iluminista, tenta fundar uma Arcádia em Minas, sem sucesso.

É obrigado a retornar para Portugal em 1768, segundo um decreto que o aproxima dos jesuítas. É preso e degredado para Angola, e de lá só sai por meio de sua obra, não ainda O Uraguai, mas um Epitalâmio que executa em louvor já à figura de Pombal. Nas graças do poder, encontrará, até o fim da vida, a mercê dos poderosos de quem, segundo a inspiração iluminista, ele absorve seus modelos e ideais.


Lindoia, José Maria Medeiros, 1882.


O Uraguai

A obra de Basílio, cuja profecia ao final determina que ele será lido, "e busca o sucessor, que te encaminhe/ Ao teu lugar, que há muito te espera", tinha em Machado de Assis um leitor entusiasta. É dele o juízo de que, comparada ao nosso grande lírico Gonzaga, "José Basílio da Gama era ainda maior poeta" (A nova geração, seção I), além de merecer diversas menções no romance Esaú e Jacó. Mas o que, afinal, faz a grandeza de O Uraguai? O poema de Basílio, um épico sem ser épica, situa-se no destino do seu tempo, em servir de modelo ao arcadismo reinante em Portugal e no Brasil, e que por isso mesmo, prima mais pela aceitação e adequação às técnicas do estilo que propriamente à transgressão criativa.

O traço de criatividade em Basílio encontra-se, não obstante, na coragem e na produção simbólica ambígua de sua narrativa. Insistindo em ater-se aos fatos (de que dão mostras as muitas notas de rodapé que fez questão de apresentar, para mostrar a seus leitores em Portugal que as coisas se passaram tal e qual), o que revela uma disposição realista antes mesmo dos realistas, o ponto chave da construção de O Uraguai está em ser ao mesmo tempo um louvor ao herói do massacre pombalino à comunidade indígena, governada pelos jesuítas, e uma tomada de posição afetiva para o lado dos vencidos. Quer dizer, encontra-se em seus versos aquela ambiguidade simbólica que Antônio Candido havia referido, como traço da influência marcante que a obra terá para a formação romântica e nacionalista da literatura do século seguinte.

Essa tônica ambígua e simbólica dos versos de Basílio impressiona. As cenas mais fortes e mais belas, por isso mesmo as cenas mais valorosas, são protagonizadas pelo lado dos índios que, sob a tutela dos rudes e maléficos jesuítas, acabam por ser a tradução do destino trágico na batalha junto à região Sul do Brasil. A morte do herói Sepé em batalha; a coragem do cacique Cacambo em se dispor sozinho a incendiar as matas próximas ao acampamento inimigo, o retorno de Cacambo com a notícia de seu triunfo e a traição do padre Balda, que o aprisiona e o envenena, condenando-o à morte inglória fora dos campos de batalha e pelas mãos de seus supostamente amigos; o desespero de Lindoia, sua noiva, que decide acabar como Cacambo, entregando-se sozinha à floresta para ser mordida por uma cobra venenosa - todas essas cenas, dignas de um enredo trágico por excelência, movem a narrativa de Basílio ao ponto de situar sua posição: uma espécie de acusação ao exercício do poder pelos jesuítas e de exaltação da virtude do homem indígena brasileiro, que conforma nossa matriz ética e estética. Ele quase se posiciona contrário à civilização em favor da vida indígena (entendimento que levaria Rita Durão, em seguida, elevar a vida católica e civilizada como forma de redenção dos nativos selvagens).

A obra de Basílio, desse modo, alcança uma força imagética e emotiva impressionante. Afeita aos sabores épicos das batalhas e dos heróis, o Andrade então reverenciado como herói cede espaço ao destino trágico das figuras honrosas e valorosas dos índios guaranis. Em O Uraguai, o símbolo tecido pelo extermínio dos nativos em face de uma afronta territorial orquestrada entre portugueses e espanhóis lança-nos no centro da vontade trágica do homem em afirmar sua cultura por meio da terra e da riqueza, devastando pela frente o que encontra, tanto a Natureza quanto os irmãos de espécie. A tragédia narrada por Basílio é a tecitura poética de um destino fundamental da alma brasileira, que nos move e nos comove ainda hoje, em meio a tantos desafios de afirmação política e cultural. O que podemos é, ao lado de Machado de Assis, lamentar que ainda hoje O Uraguai não seja lido como ele de fato deveria, com toda a importância de haver transmutado nossa alma brasiliana em seu destino de humanidade. A marca da brasilidade em Basílio merece transpor os limites do mero romantismo nativista. Merece ser posta como expressão de nossa alma.

Edição: L&PM

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