Santa Rita Durão - Caramuru
O Caramuru, do frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), é por certo
o primeiro grande épico brasileiro. Épico
aqui segue tanto a própria definição que a obra atribui a si mesma, quanto os
aspectos desejáveis do gênero, a que Durão não se furtou em cultivar. O
problema, ao que nos parece, é que muito pouco se cultivou da poesia desse
épico, em seu tempo e, por que não dizer, ainda hoje. Não sabemos muito sobre
sua vida e outras obras, além daquelas marcas de suas viagens e dos cargos que
ocupou em Portugal nos deixam imaginar. Não por acaso, sua obra mais conhecida
é um tributo em louvor ao maior poeta épico português. Os Lusíadas de Luís de Camões torna-se o espelho a partir do qual
Durão refletiu em sua poesia a descoberta da Bahia; a musa em vista da qual ele
orientou sua inspiração para transmutar em arte a vida brasileira. O épico de
Durão, publicado em 1781, é tributário do gênero maior da poesia de todos os
tempos, porque seu intuito era produzir, para todos os tempos, o louvor ao
Brasil cujos sucessos “não mereciam menos
um poema que os da Índia” de Camões.
Mas o século XIX soube honrar a
obra de Rita Durão. Isso, porém, sob a influência do juízo francês, que à época
seguia em busca de novidades literárias que servissem de paradigma para o fazer
poético nas américas. Ao lado de O
Uraguai, de Basílio da Gama, Caramuru
ganhava ares de romance tupiniquim, e foi essa tonalidade novelística que
preparou a ficção indianista dos românticos que, conscientes da realidade
literária exigida pelo espírito brasileiro após o grito de independência, viam
em Durão aquele primeiro esforço em transmutar nossa paisagem típica e nosso
aborígene em heróis. Nas palavras de Antônio Candido, o poema de Durão
significa, para o campo literário, “a
tentativa épica de dar dignidade à tradição, engrandecer os povoados,
justificar a política colonial” (Literatura
e Sociedade, 2014, p. 181). Estavam como que latentes em Caramuru as imagens arquetípicas de
nossa alma selvagem e humana.
Edição especial com introdução, organização e fixação do texto por Ronald Polito (Martins Fontes, 2005) |
A força dos versos de Rita Durão
encontra-se, antes de tudo, na qualidade do seu enredo, em tons decisivamente
novelísticos, como o próprio autor destaca ao início da obra. Naufragados na Baía
de Todos os Santos em 1510, Diogo Álvares Correia e seus companheiros, seis ao
final, conseguem escapar da morte ao mar, embora capturados pelas mãos dos
nativos canibais. Em seu lamento, Diogo traduz aquele sentimento de desamparo
pelo seu destino trágico:
Vemos
desd’água às praias despedida
A infeliz
gente que no mar perece,
E que o
brutal gentio na mesm’hora,
Ainda bem
os não vê, logo os devora. (I, 70)
A batalha entre as tribos de
Sergipe e Gupeva adia o banquete com o seu corpo. Devido à doença que o
acometera durante a viagem, Diogo reveste-se com roupas e armas militares
deixadas sem uso na praia, e o fogo do tiro que mata um pássaro o torna, para
os gentios do recôncavo baiano, o filho do trovão, Caramuru. Combatendo contra
as tribos rivais de Sergipe, é convidado por Gupeva a tomar as jovens
tupinambás por mulheres, tributo devido a um deus. Diogo, no entanto, se
apaixona por Paraguaçu, recusando as demais em favor de um amor celestial.
Aqui, por certo, a imaginação de Durão se esforça por enaltecer o ideal de
civilização e do amor cristão a fim de transmutar as loucuras e os degredos dos
prazeres carnais nativos.
Rende-lhe o
seu amor, mas inocente;
E faz-lhe
prometer, que com fé pura,
Enquanto se
não lava e regenera,
Em continência
viverão sincera. (II, 88)
Nessa composição poética, as
figuras de Diogo e de Paraguaçu transformam-se no seio simbólico em que se
gestam a vida brasileira, a partir da dinâmica entre o português e o nativo, o
cristão e o gentio, a razão e as paixões. E é exatamente a partir dessa
dinâmica que o retorno do casal ao velho mundo, apresentado por Durão nos
cantos finais da obra, traduz o seu ideal de colonização: se Diogo, tornado
Caramuru, havia obtido dos nativos o respeito e o amor devidos a um Tupã,
Paraguaçu, tornada Catarina, enobrece a linhagem baiana e brasileira a partir
da pureza da sua conversão ao amor cristão. O retorno do casal às terras dos
tupinambás é símbolo do marco civilizatório louvado por Rita Durão em Portugal.
Essa força de seus arquétipos
trai, como não poderia deixar de ser, o traço verdadeiramente poético de sua
qualidade artística, sobretudo em face de dois elementos surpreendentes: (1) a
forma pela qual o choque cultural entre duas civilizações mantém-se, de certo
modo, na tensão constante do diálogo, centrado na figura do herói Diogo como
uma ambiguidade latente à alma tupiniquim, e da Paraguaçu convertida, como
tarefa civilizacional legada pelos portugueses ao futuro das terras de Santa
Cruz; (2) a riqueza de detalhes sobre a vida e os costumes das etnias nativas,
o que se faz surpreendente visto que Durão só viveu no Brasil até seus nove
anos de idade, tendo produzido, portanto, por imaginação e por notícias de
segunda mão, um dos mais impressionantes relatos sobre nossos antepassados.
Se, como disse Silvio Romero, Caramuru é “o poema mais brasileiro que possuímos”, uma tal grandeza épica
deriva do amor pela pátria que move e comove a alma poética ao sabor do que
perdura, do que insiste em nossa maneira de ser, daquilo que afinal não podemos
deixar de ser. O Caramuru, de Durão,
é um épico que narra a nossa origem, e que deveria ser leitura entusiasta de
todo brasileiro ciente de seu lugar no mundo.
Edição: Martins Fontes
Comentários
Postar um comentário