Houellebecq - Plataforma
Não se deve começar a falar sobre
um romance pelo seu fim, mas em Plataforma o fim define a intenção e a dinâmica
do enredo: ao final, descobrimos que todo o livro é narrado pelo escritor que
é, afinal, a protagonista dos seus acontecimentos. O personagem-autor, de nome
Michel, revive o seu drama ao vivenciá-lo outra vez pela escrita. Esse é sempre
e a cada vez o dilema e o prazer de todo escritor. Se o drama de Michel foi ou
é o mesmo de Houellebecq, pouco nos importa. Importa mesmo é que o drama de Michel
seja em parte de todos nós, ocidentais, em face de uma ânsia por sabermos
encontrar respiro e sentido numa vida inserida nessa crise cultural provocada
pelo próprio auge que ela faz questão de exaltar.
O auge e a crise da cultura
ocidental têm seu vórtice no capitalismo. O tecido das relações e dos afetos humanos,
transpassados pela lógica do comprar e vender faz igualar os valores morais ao
valor financeiro. Nada mais democrático, diriam, e Michel, como um democrata
niilista, recebe da vida um ânimo novo depois que a morte do pai lhe confere
uma herança atraente. É preciso, agora, respirar novos ares, viver a vida, como
dizem. Parte em viagem para a Tailândia, a fim de se permitir viver algo mais
do que a sua função de burocrata público até então lhe permitira. Se toda
viagem é por si a oportunidade de respirar novos ares e de encontrar sentido em
viver algo mais do que a burocracia da rotina diária, essa liberdade do turista
se transforma, pela escrita de Michel que é a de Houellebecq, em liberdade par excellence.
A liberdade de Michel se encarna
em Valérie. A jovem agente de turismo reservada e quieta vai se tornar, após a
viagem, sua amiga e amante, sua parceira e mulher, e tudo aquilo que eles
quiserem mais. Porque como encarnação da liberdade, a presença de Valérie não é
uma prisão, mais um respiro e um sentido para a vida rotineira e amargurada de
Michel. Valérie não se faz presa a padrões com relação ao sexo e à moda, indo
saudavelmente contra o espírito do tempo que vê no dinheiro a liberdade que não
alcançam encontrar dentro de si mesmos. Tanto Valérie quanto Michel encontraram
no dinheiro, talvez ainda mais por estarem juntos, a liberdade que era já a que
sua alma alimentava. Uma paixão pela vida traduzida em tórridas cenas de amor e
de tesão abrilhantam o romance de Houellebecq quase como se nos convidasse a
vivenciar a liberdade na alma que é o respiro e o sentido na vida. Eu disse
quase?
Quase não percebemos, nós
leitores de Houellebecq, que o escritor nos encaminha para o seu drama. Quase
imaginamos, bem perto do final do romance, que tanto Valérie quanto Michel, ainda
mais por estarem juntos, tivessem afinal chegado ao paraíso. O lugar paradisíaco
em que o casal e seus amigos decidem aportar de vez, regado à beleza virgem da
natureza, a tailandesas sedentas por carinho e dinheiro e à simplicidade que
liberta das agitações da vida moderna e capitalista, era mesmo a tradução de
paraíso na terra. Mas não há paraíso na Terra, a não ser para os apóstolos do
califado. E para eles, o paraíso está em conduzir os povos ímpios ao inferno. O
drama de Michel torna-se, ao final, um drama nosso, ocidental, diante das
mazelas que as mãos humanas podem cometer em nome de Deus. O paraíso
transformado em inferno é como a síncope de nossa amada e desejada liberdade. É
como perder o ar que respiramos, perder o sentido que nos orienta a viver.
A escrita de Michel, que é a de
Houellebecq, nos convida em Plataforma
a encarar o inferno na Terra, precavidos de que o paraíso, se existir, não
tende a durar muito. Só que mesmo sem ser duradouro, é ele que nos dá o respiro
e o sentido para afinal continuarmos a viver. A liberdade é e continuará sendo
nossa plataforma em direção ao paraíso. Em que sentido for.
Edição: Alfaguara.
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