Tomás A. Gonzaga - Marília de Dirceu

Nicolas Lancret (1690)

Ao lado de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) é figura-chave do movimento literário conhecido como arcadismo (ou neoclassicismo) brasileiro, que traz o lirismo bucólico pela natureza e pelo amor pueril como sua força mais pungente contra o mundo sombrio e tenebroso do barroquismo. Não que o barroco fosse de fato terrível em sua emoção estética, mas pelo contraste forçado com o lirismo dos árcades acaba por concentrar toda a confusão da alma em crise e perdição, pintada com versos rebuscados e com malabarismos linguísticos ditos gongóricos – adjetivo que remonta ao principal nome desse estilo. O espírito iluminista, posicionando-se em oposição aos enlevos religiosos e míticos das imagens barrocas, confere ao estilo árcade seu lema fundamental: inutilia truncat, "cortar o que é inútil" (Merquior, De Anchieta a Euclides, p. 65-68). No verso árcade, ao contrário, a natureza se torna paradisíaca, posto que é, no dizer de Rousseau, a sociedade que corrompe os homens. Retornar ao bucolismo da vida selvagem e desfrutar do jardim do Éden eram sonhos de amor burguês que a poética de Gonzaga não pôde se furtar em nutrir.


Mas se os versos do português Gonzaga, inspirados pelo amor idealizado por uma jovem brasileira (de nome Maria Joaquina Doroteia de Seixas, após o que ficou imortalizada como sua musa Marília), reverberam as lições da Arcádia Lusitana e do mestre poeta Cláudio, eles se comprazem em tecer, segundo a avaliação de Veríssimo (História da Literatura Brasileira, p. 139), a força pessoal e emotiva de sua tragédia, escapando às fórmulas de escola ao cantar as dores fecundas e honestas de seu sofrimento. Isso torna interessante o contraste entre o movimento literário e a realidade imediata da vida política da época. Ambos os poetas em Vila Rica (atual Ouro Preto) foram considerados como integrando o movimento de rebeldia contra a coroa portuguesa, conhecido como Inconfidência Mineira (1789), ambos terminando seus dias nas Minas Gerais em uma prisão, à espera da penalidade máxima que, no fim das contas, apenas o Tiradentes sofreu.


Largo Marília de Dirceu, Ouro Preto MG

Lançada à prisão, a alma poética se faz conhecer com evidência incomparável. Cláudio Manuel não pôde, com sua excessiva sensibilidade, suportar o fardo de haver sido envolvido na conjuração, talvez injustamente, e acabar denunciando seus companheiros (motivo pelo qual parece ter se suicidado no mesmo ano em que foram presos). Tomás Gonzaga, no entanto, passou os três anos de prisioneiro a compor seus versos à Marília, quase como se sua paixão poética tivesse aflorado pela dor do amor impossível. Em 1792, viu-se forçado ao exílio em Moçambique, afastado de sua terra e de sua amada Marília para sempre, não sem por isso dedicar-lhes as liras publicadas naquele mesmo ano.


É bem verdade que esse contraste entre os dois maiores nomes da poesia árcade brasileira em nada denuncia o efeito literário pretendido, bem ao contrário  porque é próprio à uma literatura de evasão apresentar um mundo outro mais ameno ou fantástico, a caminhar em paralelo aos desgostos e às desilusões dos dias reais. A poesia de Gonzaga, ainda que possa se situar como literatura de evasão, não deixa de expressar o lirismo da alma adoecida, na exata medida em que idealiza o presente por meio de um passado enfeitado de imagens mitológicas, tal como seu presente solitário se percebe aflorar com as lembranças da bela Marília. Seria uma arte homérica, só que centenas de vezes mais desbotada, por certo: sua musa inspiradora não é mais uma divindade que torna memorável os feitos gloriosos do passado, em vista de produzir no presente a virtude através da imitação; a musa agora é uma dama que, idealizada pela veneração do amor que ela provoca no poeta, torna-se em divindade pastoril e bucólica, uma expressão da paz que o poeta, ao amá-la e não tê-la, é incapaz de sentir.


É por isso que os versos de Gonzaga prefiguram, dirá Merquior (p. 80), o páthos romântico antes do estilo próprio ao romantismo. As emoções fortes que são sentidas não raro entram em dissonância com a pureza idealizada em sua Marília, contribuindo na verdade para dessacralizar o petrarquismo do amor pastoril pelo feminino inacessível a partir de uma ênfase na dor do amante. O espírito naturalista do pastor Dirceu, que Tomás encarna ao reverenciar sua musa, ergue Marília como o ideal de mulher a ser amada: não por acaso, supõe-se que Gonzaga tenha exercitado seu lirismo antes mesmo de se apaixonar por Marília (apesar de Veríssimo não acreditar nessa suposição; p. 138); e ao se apaixonar, não pôde amá-la senão através de uma mitologia que oferecia, ao seu amor irrealizável, a estatura divina de um sofrimento amoroso.


Como uma mitologia, Marília de Dirceu engendra para nós o símbolo da alma que necessita escapar de seu próprio inferno, através da paixão onírica de um paraíso perdido. Como mitologia, a obra de Gonzaga encontra seu lugar na alma brasileira, ao ser o primeiro a versificar a paixão de uma forma tão constante e terna. A musa e o amor se tornariam, sob a pena de Gonzaga, o sonho acordado que enfeitou a alma brasileira com aquele evasionismo latente em nós, toda vez que a crueza da realidade nos força a sonhar para não ter que ver a confusão e a crise a que fomos destinados. Mais ainda: o estilo simples e sem floreios, que foi a marca do arcadismo, ao mesmo tempo em que se dirige às almas menos afeitas ao preciosismo da cultura letrada, empobrece a linguagem poética e a expressividade do verso, substituindo a força imagética da elaboração poética do barroco por um tipo de bucolismo seco e pueril. Se para Cândido (Formação da Literatura Brasileira, p. 118) a grandeza de Gonzaga se encontra na capacidade poética de articular uma linha racional para toda a variedade de afetos e de estados de alma que o poeta sente, ao contrário do que fariam depois os românticos, a excessiva intenção bucólica e mitológica trai a melhor parte de seu lirismo  aquela pulsão emocional que só um apaixonado é incapaz de ocultar.




Marília de Dirceu, Guignard (1946)

Não sei, Marília, que tenho, 
Depois que vi o teu rosto; 
Pois quanto não é Marília, 
Já não posso ver com gosto. 
            Noutra idade me alegrava, 
Até quando conversava 
Com o mais rude vaqueiro: 
Hoje, ó Bela, me aborrece 
Inda o trato lisonjeiro 
Do mais discreto pastor 
Que efeitos são os que sinto? 
Serão efeitos de Amor?

Saio da minha cabana
sem reparar no que faço;
busco o sítio aonde moras,
suspendo defronte o passo.
                  Fito os olhos na janela;
aonde, Marília bela,
tu chegas ao fim do dia;
se alguém passa e te saúda,
bem que seja cortesia,
se acende na face a cor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de Amor?

Se estou, Marília, contigo,
não tenho um leve cuidado;
nem me lembra se são horas
de levar à fonte o gado.
                         Se vivo de ti distante,
ao minuto, ao breve instante
finge um dia o meu desgosto;
jamais, Pastora, te vejo
que em teu semblante composto
não veja graça maior.
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de Amor?

Ando já com o juízo,
Marília, tão perturbado,
que no mesmo aberto sulco
meto de novo o arado.
                           Aqui no centeio pego,
noutra parte em vão o sego;
se alguém comigo conversa,
ou não respondo, ou respondo
noutra coisa tão diversa,
que nexo não tem menor.
Que efeitos são os que sinto?
Serão efeitos de Amor?

Se geme o bufo agoureiro,
só Marília me desvela,
enche-se o peito de mágoa,
e não sei a causa dela.
                     Mal durmo, Marília, sonho 
Que fero leão medonho T
e devora nos meus braços: 
Gela-se o sangue nas veias, 
E solto do sono os laços 
À força da imensa dor. 
Ah! que os efeitos, que sinto, 
Só são efeitos de Amor.

Lira XXI

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