Dostoiévski - Humilhados e Ofendidos



Resisti bastante em escrever algo sobre essa que foi minha última leitura do gênio russo terrível. E se resisti, foi por ter achado que havia muito a ser dito, e dizê-lo não caberia em uma resenha, porque não substituiria jamais a experiência de ler Humilhados e Ofendidos. Mas talvez a intenção de uma resenha não seja a de substituir, e sim de convidar a que se tenha a experiência de lê-lo. No entanto, como fazer para convidar a essa leitura impactante e desafiadora, suave e profunda, densa e serena, a ponto de doer a alma e os olhos que, insistentes, se recusam a fechar sem que mais um capítulo possa ser desvendado? Melhor não seria empregar o tempo em ler a obra antes que qualquer resenha? Como levar alguém a ler uma obra desse nível senão dizendo-lhe: leia, porque é uma obra de nível, um livro genial, uma escrita soberana? Haveria resenha capaz de convidar um leitor de uma forma mais bem sucedida que aquela que lança o curioso logo e imediatamente para dentro da obra?

Vou tentar lançar-lhes para dentro da obra. Desde logo, é importante não desprezar o título, tal como são desprezadas as pessoas pobres do livro. A primeira postura para entrar na obra de Dostoiévski é ser simpático aos que sofrem, ao sofrimento humano de modo geral, e de maneira particular o dos mais desprezados. Talvez não tenhas essa sensibilidade, mas não te preocupes – o gênio de Dostoiévski te tornarás sensível, desde que o faças ler. Porque em Dostoiévski, a voz da dor é a mais constante, predominante, a mais harmoniosa com a ideia de humanidade que carregamos no peito, e com o sentimento de desamparo que obscurece nosso olhar. A dor da existência desamparada pode ser dita, se o fosse possível dizer, a música cantada pelas Musas através do gênio russo de Dostoiévski. Talvez não tenhas assim tanta sensibilidade para se comprazer com a dor e o sofrimento alheio. É exatamente para esses casos que se faz urgente lê-lo.


A dor da existência desamparada é a música de Humilhados e Ofendidos. É possível ouvi-la desde o título, mas já as primeiras cenas a cantam, com uma carga simbólica que beira a perfeição cênica feita com palavras. Entramos na cena pela descrição ritmada dos movimentos das personagens, externos e internos, e vamos sentindo o sabor terrível que se projeta até o final com a alma pulsando de curiosidade e de sofreguidão. Que espécie de habilidade no discurso é capaz de nos aproximar de modo tão forte dessas criaturas humilhadas e ofendidas? Já pelos movimentos de Ivan Petrovitch, o escritor que é também o narrador da história, ao encontrar no início da narrativa o velho e o seu cão, temos a impressão de que a miséria humana, aos poucos, ganha a forma do ambiente em que as vidas se inserem e vivem, não há como escapar, todas elas feridas e empobrecidas pela falta de algo que nem sempre é material. Porque a figura do príncipe que surge como algoz em Humilhados e Ofendidos é o símbolo mais evidente do pobre de espírito, daquele que, mesmo vindo de família nobre, engendra as ações mais perversas e ofensivas para alcançar bens materiais, quase sempre os tirando de quem quase não os tem.

O enredo da obra não é simples, mas pode ser indicado pelos apontamentos seguintes: Vânia, como nosso escritor-narrador é conhecido no interior da família que o criou, acaba de encontrar algum sucesso pela publicação de seu primeiro livro, o que desperta o orgulho dos seus, sobretudo o de quem mais desejava despertar, o da sua irmã de criação e amada Natasha. Mas ela se encontra, antes, apaixonada por Aliocha, o jovem filho do príncipe Valkovski, de traços ruborizados e de uma lascívia inocente e ofensiva. Diferente do pai ardiloso, Aliocha ama Natasha e a deseja pela beleza que ela tem, e não pelo dote que pode pagar, porque afinal não poderia. Isso leva o príncipe a repudiar aquela proximidade, engendrando que o filho se apaixone por outra mulher, a filha da condessa, inocente, bela e delicada Kátia. Mas Vânia, que se fez confidente de Natasha, está como que posto no desafio de Aliocha em lidar com dois amores, para ele ambos ardentes e louváveis, já que precisa casar-se com uma delas. A angústia de Vânia se amplia ao ver que o príncipe, em seus ardis contra Natasha, decide processar o pai dela, que é seu pai de criação, pela suspeita de o velho o tivesse roubado enquanto trabalhava para ele.

As relações entre as personagens seguem um crescendo de carga emocional e de intensidade nos laços entre presente e passado, tornando o futuro às vezes incerto, às vezes aterrador. As ofensas do príncipe ao pai de Natasha refletem na relação do pai com a filha, a ponto de ele expulsá-la de casa com a alma amargurada de dor e sem perdão. Natasha, por outro lado, além de desprezada pelo pai, sente que o amado Aliocha está cada vez mais apaixonado por Kátia, e mesmo sentindo que fere Vânia ao fazê-lo intermediário dessa sua relação, só pode afinal contar com ele para ajudá-la. Mas Vânia, que a tudo observa sem conseguir escrever mais, é surpreendido pela visita de uma pequena moça, que ele descobre ser neta do velho pelo qual ele havia se surpreendido ao início da sua narração. E como se trata de mergulhar o leitor nesta obra de Dostoiévski, deixarei por um momento o próprio escritor com a descrição do velho que o surpreendera.

Edição 34

“Mesmo antes desse encontro, sempre que cruzava com ele na confeitaria do Müller causava-me uma impressão dolorosa. As costas arqueadas, o rosto octogenário, de aspecto cadavérico, o casaco velho com as costuras rotas, o chapéu redondo de pelo menos vinte anos de uso, todo estropiado. (...) De fato, era meio estranho ver esse velho já com um pé na cova, sozinho, sem ninguém para cuidar dele, ainda mais que parecia um louco que fugira de seus vigilantes. Havia me impressionado também sua extraordinária magreza: ele quase não tinha carne; era como se não houvesse nada além da pele colada sobre os ossos.


O velho e o seu cão, que abrem o livro sobre os humilhados e ofendidos, tinha uma neta que ressoa para nós, durante os pontos fundamentais da narrativa de Dostoiévski, como arquétipo da vida pobre e sofrida, angustiosa pelas vicissitudes que ela não controla, e adoecida pelas consequências emocionais que também não pode controlar. A pequena Nelli parece mudar os dias sem graça de Vânia, mais do que poderiam fazer os conflitos de amor da sua amada Natasha. Nelli, ao contrário, era a encarnação da gente pobre que ele havia descrito em seu primeiro romance – ele, digo, não apenas Vânia, mas o próprio Dostoiévski, como a demonstrar, de algum modo, a força do sofrimento que os anos passados na prisão deviam ter-lhe imprimido na alma, e que Nelli simboliza, com todos os traços rudes e enrijecidos de uma criatura que teria tudo para ser graciosa, mas que não pode ser o que poderia. A humilhação e as ofensas suportadas pela criança Nelli, até o conflito final das personagens que encerra o livro, não deixa nenhum leitor incólume, mesmo aquele menos afeitos ao sofrimento alheio. Talvez haja ainda alguém que, após a leitura de Humilhados e Ofendidos, não traga em si a dor alheia como uma parte de sua própria alma. Mas esses poucos, diria Dostoiévski, estão mais doentes que a sua frágil e forte Nelli.

Haveria de dizer mais, porque a tragicidade de qualquer alegria final nas obras do escritor russo está carregada de simbolismo, de intuições filosóficas e psicológicas sobre a existência –  mas que, de certo modo se for adiantada, retira da leitura aquele ritmo de suspense e de mistério que encontramos em Crime e Castigo, por exemplo. Não é que o final não deva ser contado para não estragar a surpresa. É porque o final, para ser representado, tem de ser vivido com toda a carga emocional a que Dostoiévski vai nos conduzindo a acumular junto com suas personagens. É por isso que só posso, no máximo, conduzir o leitor a que possa entrar na obra, e a se deixar conduzir pelo gênio russo. Porque nada substitui aquela experiência de poder lê-lo. Em Humilhados e Ofendidos, obra de gênio, nada substitui a vivência que é, ao mesmo tempo, a sensação quase indescritível de poder acompanhar a perfeição na descrição e na narrativa. Só pude aqui, no máximo, sugerir a entrada – sem que te sintas humilhado ou ofendido por não entrares, caso não queiras. Apenas estarás menos humano.

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