Botelho de Oliveira, Música do Parnaso


Se Bento Teixeira, há 104 anos da publicação deste Música do Parnaso, concebia-se enquanto poeta épico, Botelho de Oliveira pode ser dito o primeiro lírico de que temos uma obra literária preservada. Pertencente ao grupo baiano, como ficou conhecido os primeiros rebentos da letras brasileiras devido ao local de nascimento em comum, Botelho de Oliveira é o único de quem restou obra publicada em vida – ao seu lado, apenas o caso emblemático de Gregório de Matos, e a vastidão de manuscritos que foram aqui e ali conservados ao longos dos tempos, merece ser destacado desse grupo de poetas, talvez menos pela qualidade (exceto o caso de Gregório, poeta de um brilhantismo na crítica e de uma vastidão temática dignas dos grandes literatos) do que pelo destino a ter preservado.



Manoel Botelho de Oliveira nasceu em 1636, provavelmente na ilha da baía de Todos os Santos que se torna, na obra Ilha da Maré, uma espécie de Musa inspiradora, um símbolo de seu nacionalismo embriagado de naturalismo, e morreu em 1711, segundo a notícia registrada na Biblioteca Lusitana por Diogo Barbosa. O crítico José Veríssimo, em sua História da Literatura Brasileira, encontra nessa obra o que há de melhor em Botelho, exatamente esse símbolo que depois servirá de inspiração a Rita Durão e a Gonçalves Dias – que em Canção do Exílio achará a forma definitiva desse tipo de poesia emotiva que louva as riquezas naturais da terra natal.


Sobre Música do Parnaso, no entanto, diz o crítico, "é pobre de sentimento e inspiração" (1998, p. 88). Esse tipo de censura parece comum ao meio crítico, que tende a julgar negativamente a qualidade de poetas vinculados ao período barroco de nossa literatura, o que corresponde, segundo o parecer de João Adolfo Hansen (Fênix renascida & Postilhão de Apolo: uma introdução, 2002), à incrível distância que separa a publicação da obra em 1705 e sua reedição, só registrada no século XX (uma breve antologia contendo apenas as rimas portuguesas – organizada por Afrânio Peixoto em 1929). Em Antônio Cândido pode-se ler algo similar, no intuito de depreciar a poesia barroca:


A esse espírito entre devoto e cortesão se vincula um escritor de certo interesse, Manuel Botelho de Oliveira, exemplo típico do falseamento a que chegou o espírito barroco nos seus aspectos menores, quando a argúcia virou pedantismo e a sutileza um mero exibicionismo, dando a impressão de que a palavra rodava em falso, à procura de nada (Iniciação à literatura brasileira, 1997, p. 24).



De melhor parecer, a crítica de José Guilherme Merquior (De Anchieta a Euclides, 1996) é sugestiva para uma leitura menos preconcebida e mais valorativa:


Colocada sob o signo de Góngora e Marino [...] Lírica onde as convenções petrarquistas [...] e a excepcional acuidade das imagens visuais se articulam em engenhosos paralelismos sintáticos, estofados de expressões de significação ora convergente, ora divergente e antitética. (p. 32)



Contra esse tipo de leitura se voltou Ivan Teixeira, na resenha crítica em comemoração pelos 300 anos de publicação de Música do Parnaso pela edição fac-simile pela editora Ateliê (Dissonâncias Intelectuais, Folha de São Paulo, 11.12.2005). Na oportunidade, ele destacou de que modo a leitura de Cândido, enviesada pela moda modernista de uma poética do cotidiano, faz contrariar os pressupostos adotados pelo próprio crítico, já que Botelho e sua poesia não se dirigem ao futuro, ou seja, a uma época nossa, e sim ao seu tempo, o que nos induz a ressaltar as qualidades poéticas e literárias seiscentistas e barrocas. Julgar Botelho de Oliveira sob a ótima modernista é empobrecer os versos profundamente comprometidos em dar voz ao que havia de melhor em sua época.



MÚSICA DO PARNASO (1705)

A obra de Botelho é singular. Além de trazer suas rimas em outros 3 idiomas além do português, seu prólogo nos situa em meio à valorosa necessidade de trazer as Musas inspiradoras da grande poesia para então comporem em português, e cantarem as maravilhas dessas terras da América. As grandes Musas da arte poética são, desse modo, apresentadas em uma espécie de patrocínio descendente: vindas da Grécia, influírem sobre o espírito dos latinos romanos, depois dos italianos, até chegar ao auge da poesia espanhola e a portuguesa, em cuja fortuna lírica Botelho se situa.


Um resumo preciso do que se pode encontrar em Música do Parnaso está na resenha de Ivan Teixeira (2005) já referida, e que reproduzimos aqui em sua sintética apresentação.



Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), escrevendo para o seu tempo, partilhou do código artístico formado pela tradição dos grandes poetas europeus do século 17. Logo, predomina em "Música do Parnaso" (Lisboa, 1705) o discurso agudo e engenhoso, baseado na metáfora antitética e na hipérbole metafórica, quase sempre fundidas no típico processo de aproximar as diferenças e ampliar as paixões. Além disso, o poeta intensifica a adoção equívoca dos vocábulos, seja por meio do trocadilho, seja por meio da calculada polissemia da frase, seja por meio da exploração de efeitos da luz e das cores sobre os afetos. Adota inversões sutis dos termos na oração e repetições simétricas de palavras ou de unidades maiores do período. Justapõe harmonias e dissonâncias, privilegiando as dificuldades sonoras, que mobilizam paroásias, sobreposição de vocábulos proparoxítonos, rimas imperfeitas, rimas toantes e jogos de termos homônimos.


Em Música do Parnaso ouvimos a força da tradição poética falar sobre o alvorecer da civilização brasileira. Botelho pretende mostrar de que modo as Musas podem falar sobre nós, ou "mal se podia esperar que as Musas se fizessem brasileiras". Esse forte apelo à inspiração das Musas, que insere sua proposta poética no longo percurso pelo qual desde a Grécia homérica a literatura fala para e sobre os homens, se deixa ver na determinação de Anarda como centro em que gravitam os versos em diversos idiomas. Sua intenção estava, desse modo, em mostrar que, tal como a natureza, sua poesia se compraz pela diversidade de suas manifestações, que lutam contra o tédio das letras uníssonas. Escrever em castelhano, em italiano e em latim, além do português, apresenta sua proposta poética como um falar ao mundo: ou cantar, porque Música do Parnaso é poesia, e "a Poesia não é mais que um canto poético, ligando-se as vozes com certas medidas para consonância do metro".

Em sonetos, madrigais e redondilhas Botelho de Oliveira pretende louvar seu herói com versos que na verdade dizem pouco sobre o herói e sua terra, diferente do que fizera Bento Teixeira, e mais sobre as situações diversas em que se pode encontrar a musa inspiradora, a paixão sentida e sofrida, o valor da vida oferecida em amor. Botelho, com isso, parece romântico antes do romantismo, mas sua paixão é barroca, porque intensificada pelos contrastes, trocadilhos e repetições de palavras que jogam com os significados muitas vezes sem outra função senão a sonoridade. Em outras, contudo, as repetições são parte da significação que só o contraste ressalta.

Mas esta diferença Anarda teve:
Que a rosa deve ao Sol seu luzimento
O Sol seu luzimento a Anarda deve. [soneto XX]


Outros assuntos são elencados por Botelho da segunda parte de seu coro de rimas portuguesas. Mesmo ali, contudo, o que se percebe é uma poesia demasiadamente preocupada com a forma métrica e com o estilo, mais do que com a riqueza das imagens e da sensibilidade. A riqueza do estilo presente em Botelho, segundo a bela introdução de Muhana feita para a edição da Martins Fontes (a da imagem acima, publicada em 2005), prende sua intenção poética ao compromisso de se ver afeito às métricas tradicionais e aos ditames do gênero lírico, no qual ele pretende se esmerar. 

Somos, assim, deixados com a sensação de que as Musas de Homero na verdade cantam a partir da retórica de sofistas, organizada por Aristóteles, ao dispor de figuras de linguagem e temáticas líricas para expor personagens e sua exultação a elas, seguindo em grande parte o modelo de Giambattista Marino, intermediado por Camões, Lope de Vega e Góngora. A melodia de Botelho, ainda que sonora em sua riqueza estilística, pouco comove nossa alma, nós que somos em muito modernistas como Cândido. Se a força das Musas pudessem cantar, a poesia brasileira ali presente talvez tivesse encontrado uma voz e uma música menos presa e mais jovial. Não que ela devesse necessariamente se adequar ao nosso tempo: mesmo a morte de um javali pode alcançar a imortalidade dos versos, se a sua música puder alcançar os ouvidos que trazemos na alma de forma a que esqueçamos da métrica e nos encontremos diante do corpo morto do animal, só nós e ele ali. Talvez Botelho tenha chegado bem próximo a isso com tais versos.

Não sei se diga (oh bruto) que viveste,
ou se alcançaste morte venturosa;
pois morrendo da destra valorosa,
melhor vida na morte mereceste.

Esse tiro fatal de que morreste,
em ti fez uma ação generosa,
que entre o fogo da pólvora ditosa
da nobre glória o fogo recebeste.

Deves agradecer essa ferida,
quando esse tiro o coração te inflama,
pois a maior grandeza te convida:

De sorte, que te abriu do golpe a chama
uma porta perpétua para a vida,
uma boca sonora para a fama.


Edição: Martins Fontes

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