Dostoiévski - Niétotchka Niezvânova



Acredito ainda não ter dito, mas o momento é propício para dizê-lo: Dostoiévski me tira do sério. Supondo o sério como a rotina diária da vida nossa, dos afazeres e da completa simetria, sempre almejada e nunca obtida, entre nossas ações e nossos planejamentos, o autor russo é um dos poucos que me tiram do sério. Há, por certo, literatura para todos os gostos e oportunidades. Leituras de rotina e de lazer variam conforme o sabor do espírito, mas não se chega a suspeitar por meio delas quais seriam afinal os ensaios mais submersos e mais desconhecidos de nossa vida íntima. Nem tudo na vida espelha a intimidade secreta de nossos desejos e pesadelos com tamanha precisão, que nos faça ver a nós mesmos naquilo que somos mas desconhecemos, ou recusamos aceitar, ou deixamos de lado por não fazer parte da rotina diária, dos afazeres da vida externa. Desde que pude encontrar meu espelho na literatura, não abri mão em nenhum momento de me ver cercado por aqueles autores que me tiram do sério e me fazem encontrar-me a sós com o fosso fundo da vida íntima. Desde que pude encontrar Dostoiévski, não abro mão de mergulhar fundo no mistério que me tira da rotina.

Foi mesmo uma surpresa de tirar do sério a leitura do seu Niétotchka Niezvânova. Predito como projeto de um romance de formação, na esteira do gênero que floresceu com Goethe, seu Niétotchka Niezvânova terminou inacabado, por certo em decorrência dos dez anos que passou preso na Sibéria. Sua prisão em 1849 mudaria o ritmo de sua obra. O ainda não terminado Niétotchka Niezvânova, iniciado por volta do ano 1845, antes de haver publicado seu primeiro romance, de 1846 (Gente Pobre), recebeu após a saída da prisão a reformulação necessária para publicá-lo como uma novela. Ainda que tivesse em mente retomá-lo, abandonou a personagem principal do romance em sua fase adulta. Tal abandono não transformou apenas seu projeto de romance em uma novela: fez de sua obra o símbolo de um autor reformado, atraído para o fundo de si com tamanha violência e profundidade, que marcariam definitivamente sua obra. A vida abandonada de Niétotchka é mesmo simbólica como romance de formação inacabado. Porque o autor, ele mesmo, estava para se descobrir.

O enredo de Niétotchka Niezvânova é dos mais trágicos e delicados da história da literatura. Os três momentos que marcam a trajetória de Niétotchka até à vida adulta moldam sua alma por sofrimentos e desilusões, e as alegrias são tão escassas e comedidas que servem inclusive para aumentar a sua dor. Sua história começa pela figura do padastro, um músico medíocre que despreza seu talento tanto quanto a família que o recebe. Havia causado à mãe de Niétotchka a melhor das impressões, daquelas em que se imagina uma figura de renome quando não passa por ser um ninguém. A chegada à cidade de um músico de renome leva ao delírio seu padastro: depois de assistir a apresentação do aclamado violinista, perde o brilho do talento e os limites da razão. Morta a mãe, Niétotchka vê-se abandonada por aquele que ao mesmo tempo era o amor de seus dias e a razão final de sua orfandade. Salva por um príncipe, é recolhida e criada por ele, mas a dor de sua desilusão só muito aos poucos vai outra vez se tornando em abertura para a vida, para a alegria, quiçá para o amor.

Apaixonada pela princesa arredia e de hábitos austeros e mimados, Niétotchka descobre outra vez o sabor do sorriso que na vida está limitado a tão poucos momentos quanto são as oportunidades que lhe são dadas de ver a princesa. Kátia, arredia e mimada, arde aos poucos na mesma paixão que move os beijos involuntários de Niétotchka, criando entre elas os laços de uma amizade cujo mistério refaz o colorido da vida para Niétotchka e a descoberta da própria natureza para Kátia. Não sendo a alegria senão momentos, a felicidade das duas é interrompida por uma viagem repentina do príncipe, que leva Kátia consigo e deixa Niétotchka aos cuidados de sua filha mais velha, Aleksandra. Em casa de Aleksandra, Niétotchka encontra seu terceiro lar. O terceiro momento de sua trajetória, marcado com uma tonalidade serena, sem os sobressaltos dos anos vividos com o padastro e com Kátia, é talvez o que concentra os momentos em que realmente sua alma se eleva acima das perturbações da paixão e dos sentimentos.

Com Aleksandra, Niétotchka pode sentir propriamente o ritmo da vida diária, longe dos sobressaltos de dor mas também de prazer. Encontrando em Aleksandra uma mãe e um exemplo, não pode deixar de lamentar o destino entristecido e angustioso que tenha de passar ao lado do marido. Niétotchka, ao encontrar o acesso à biblioteca da casa, inicia pela leitura a formação de sua alma, nas idas e vindas dos amores de heróis das histórias românticas degustadas com prazer. A rotina de leitura invade e transforma em regozijo aquela rotina diária e pacata de sua hospedagem junto a nobre Aleksandra. O cume de sua formação é simultâneo à descoberta que ela faz de uma carta perdida em um livro de Walter Scott, em que lê as palavras do grande amor da vida de Aleksandra. Tendo então alcançado maturidade suficiente para entender o real motivo do sofrimento da nobre mãe que a criou, Niétotchka torna possível reconstruir e entender sua própria trajetória, seu passado e o sofrimento de sua mãe primeira, a quem afinal tanto amou e tanto desprezou.

Ficamos, no entanto, em suspenso. O romance inacabado de Dostoiévski encerra no climáx da ação que a carta encontrada por Niétotchka provoca. O marido, tendo encontrado Niétotchka com a carta, acredita tratar-se de alguma aventura amorosa da jovem, a quem pretende desmascarar diante da mulher. A mulher, Aleksandra, sem saber que se trata de sua própria carta, é obrigada a ver a filha adotiva assumir a culpa que não lhe cabe, para preservar a mãe de mais um infortúnio na vida caso o marido descobrisse a verdade sobre o autor da carta. A meio caminho, Niétotchka revela-se de fato suficientemente capaz em lidar com seus sentimentos e decidir fazer o jogo da situação, para livrar a quem ama da vergonha, nem que para isso tivesse ela mesma que sofrê-la. Pela leitura, encontramos uma Niétotchka menos enlouquecida e febril com suas paixões, mais centrada em sua vontade e no passado que a constituiu. Só podemos mesmo imaginar que possibilidades poderia ter pensado para ela o nosso autor, durante as cenas que ainda poderiam vir neste romance inacabado.

Porém, já não importa. Dostoiévski, em Niétotchka Niezvânova, nos fez elevar pela leitura o olhar até o mais fundo de nós mesmos, a fim de enxergarmos aquilo que não se esconde sem que tenhamos que sofrer a pena da orfandade. Dostoiévski nos faz sempre lembrar o que somos, e o faz de um modo a tirar qualquer um do sério. A pequena órfã Niétotchka é o seu lembrete, é o percurso que ele criou para nos conduzir até à vida íntima, a razão de ser de tudo aquilo que fazemos. O mergulho que ele propõe é de tirar o fôlego, de uma beleza e de um encanto como poucos escritores são capazes de produzir. Se o romance acabou inacabado, esse símbolo nos convida a encarar o desafio: de terminar a nossa própria formação como que a olhar para trás e para dentro. Lendo Dostoiévski, é claro, nosso percurso aumenta em profundidade.


Edição: Editora 34

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