A crítica da crítica




O exercício da crítica literária começa por ser uma faca de dois gumes: avaliar as obras de escritores, renomados ou não, é sempre uma autoavaliação, no sentido de que não se faz uma crítica sem que haja determinados critérios que permitam a mensuração e a avaliação. São estes critérios que denunciam o crítico – mais do que ele pretende fazer ao denunciar as obras.

Humberto Eco referia-se à nossa época, mergulhada nos ambientes virtuais das redes sociais, como a ascensão dos idiotas, porque estes passaram a ter voz, a fazer análises e – pasmem – crítica. Um idiota, por definição, é alguém que está tão mergulhado em si mesmo, tão fechado em si, que o mundo inteiro se faz julgado única e exclusivamente pelo critério soberano: ele mesmo. Uma análise pode ser tomada como idiota ao utilizar um critério idiotizante, ou seja, o próprio crítico como critério.

A crítica literária, no entanto, deve aspirar voos mais altos. Em primeiro lugar, porque a crítica não é feita em função dos gostos literários do crítico: e mesmo que o fosse, desde Kant já se sabe que todo juízo de gosto tende a se universalizar, o que significa dizer ter em vista uma aceitação pelos demais como legitimamente válidos e verdadeiros. Ter em vista os leitores como foco da análise produzida é a preocupação basilar de um crítico.

Em segundo lugar, porque sendo os leitores o público almejado – seja na intenção de qualificá-lo ou de simplesmente incentivá-lo – é em função deles que as obras precisam ser consideradas. Não raro, um crítico está diante de um fenômeno de vendas do qual ele pouco ouviu falar elogiosamente ou sequer estaria disposto a lê-lo. O caso entre nós de Paulo Coelho é exemplar: aclamado pelo público, desprezado pela crítica, ainda não se produziu até hoje uma análise menos superficial e mais universal acerca daquilo que ele produz – mesmo que seja para desmerecê-lo completamente.

E aqui segue o terceiro e, por certo, mais importante ponto a ser esclarecido: a crítica, ao escapar do critério idiotizante pela consideração dos leitores, precisa estar situada em um nível acima ao mesmo tempo do crítico e dos leitores da obra avaliada. Como se chega a esse nível a não ser pela referência universal e humana das obras de maior valor já produzidas pela literatura? O critério para avaliar as obras literárias são, não há como escapar, outras obras literárias, tornadas referências por seu mérito próprio ou cultural.

Parece um círculo vicioso, não? Afinal, quem pôs lá as obras que hoje são referência de critério e de avaliação? Um clássico, como são chamadas essas obras de referência, se forma sobretudo por um feliz acontecimento, que une uma obra de estilo e um enredo humanamente valoroso, além da força histórica que faz ratificar os méritos estilísticos e o valor humano universal trabalhado sob aquela perspectiva. Essa força histórica é dupla em sua manifestação, porque diz respeito ao entrelaçamento complexo tanto daqueles determinantes de época quanto do seu caráter universal, alcançado pelo diálogo não só com o seu tempo mas com o ser humano de qualquer tempo.

Um clássico, desse modo, se torna em critério superior e humanamente válido, porque o universalmente humano é o único critério superior que possuímos para a crítica. Igual a um clássico, o crítico por vezes pode se valer de uma determinada perspectiva histórica ou filosófica que conjugue uma cosmovisão sobre a realidade e situe o ser humano em sua manifestação. O crítico literário, não por acaso, é um filósofo em potencial: avaliar obras a partir de um critério humano universal, que situe sua crítica acima dos gostos seu e do público para então qualificar ou incentivar a leitura, é tarefa das mais filosóficas que há no contexto cultural.

E pela postura filosófica, o crítico se põe em questão no momento mesmo da crítica, ao reunir critérios para se elevar acima de sua própria condição e do público de sua época. Como todo bom filósofo, ele precisa ter coragem para enfrentar os chavões e o senso comum. É preciso, igualmente, consciência da ignorância, a fim de ser capaz de medir até onde ele sabe ou não o suficiente acerca da obra avaliada, do autor criticado e dos méritos de estilo e de perspectiva que ele pode ou não apresentar. É desejável, por fim, que ele seja sincero: a verdade do que diz passa inclusive pelo desagrado próprio ou de quaisquer públicos que possam ser ofendidos.

No instante em que o crítico se pôs, com coragem, a dizer a verdade sobre aquilo que avalia numa obra, tendo em vista os critérios universais e humanos, ele alcançou aquela condição desejável a um bom leitor. E ser um bom leitor é essencial a qualquer crítico literário. A missão de educar bons leitores é o que traz sua responsabilidade perante si mesmo e os demais. É por ela que se pode, inclusive, avaliar a tarefa do crítico literário.

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