Houellebecq - Submissão




O livro de Michel Houellebecq é daqueles raros fenômenos literários que sacodem os leitores, distribuindo tapas na cara e doses cavalares de sinceridade na articulação entre o real e a fantasia, aquela sinceridade em falta hoje em dia, após a linguagem comum ceder à prisão do politicamente correto. E as resenhas sobre o livro não tardaram a fazer de Submissão uma obra preconceituosa. Só que pior preconceito é o que se alimenta contra um escritor, ao defini-lo por chavões e – por que não dizer – preconceitos. Óbvio que a decadência da linguagem está em impedi-la de dizer o que se está vendo. A missão do escritor é zelar por essa liberdade, com a maestria que eleva o idioma até ao limite do visível. A obra literária é tão mais valiosa quanto mais ela se adequa ao que diz. Não se trata de cópia, e sim de transfiguração. Tolher a liberdade do escritor é matar sua arte de desgosto; e a língua, de inanição.

É por isso que Houellebecq respira o ar luxurioso do espírito literário.  Sua prosa solta, pouco densa e muito à vontade para desferir, com ironia, sua caricatura da cultura e da civilização europeias, deixa-nos por vezes sem ar. Na verdade, ele nos tira da atmosfera tranquila do mundo burguês e muito organizado em suas instituições, o mundo em que vivemos. Falta-nos o ar porque somos confrontados com a visão terrível de um castelo de cartas a desabar, com uma facilidade espantosa. A obra de Houellebecq é um raro fenômeno de denúncia literária, no melhor estilo dos universos paralelos de Huxley e Orwell, de denúncia contra o que foi feito da França, contra o que será feito à sua França, sua e de todos nós que, irremediavelmente, aprendemos a amá-la. A decadência de seu personagem central, sem brilho nem sentido existencial, é símbolo em Submissão da sua França, sem brilho nem sentido. Em Submissão, sua França está completamente submissa ao niilismo pelo qual ela se aventurou. Pelo qual nos aventuramos – todos nós que aprendemos a amá-la. A submissão ao niilismo permite de joelhos o domínio alheio.

Não só ela, portanto. A denúncia do livro de Houellebecq é a de toda a cultura ocidental, porque estamos todos nós, em alguma medida, devotados aos ideais laicos e burgueses da Ilustração francesa. E para falar de ilustração, é preciso que seu personagem central venha do círculo dos professores universitários. O professor sem brilho François (e que outro nome ele teria?) é daquelas figuras típicas do mundo universitário. Especialista no escritor e místico Joris-Karl Huysmans, inicia após a defesa de sua tese o drama de seus sucessivos términos e recomeços. Terminar o doutoramento foi encerrar um longo ciclo de uma vida de estudos, o que lhe deixou sem perspectivas, sem brilho nem sentido existencial. Encaminha-se, naturalmente, para a vaga de professor da Sorborne III, e o recomeço de quem não está apto a nada mais na vida é a fase de outros términos, dos seus sucessivos casos de amor com as alunas do mundo das Letras, do seu caso de amor com Myriam que simplesmente termina porque não faz mais sentido continuar, porque o brilho da paixão arrefecera. As coisas vão sendo feitas sem paixão, com a naturalidade e a normalidade que conformam a vida burguesa ocidental.

Fato é que, já diziam os gregos, tudo flui e nada permanece no lugar. O ano é 2022, uma França decadente está em vias de ver ruir sua normalidade política, o confronto estável entre direita e esquerda. Ao invés de uma corrida eleitoral pendular, ameaçam tomar o poder a frente nacionalista, configurada como radical e encabeçada por Marine Le Pen, e o partido Fraternidade Mulçumana de Mohammed Ben Abbes. O contexto maior da política nacional é a moldura da vida de François. A ameaça do avanço nas pesquisas por parte do partido de Abbes faz sua Myriam, com quem ele intentava reatar o sabor pela vida, partir para Israel, decisão de seus pais. Não havia um clima auspicioso para judeus, e a França do futuro, marcada pela ascensão de poderes estranhos à sua república, faz o clima de revolta civil ameaçar a normalidade. Em autoexílio para a cidade do interior, François pressente que aquela vida sem brilho nem sentido ameaçava mudar de modo radical. Só ainda não sabia como. Porque os términos e os recomeços eram a pior parte para uma alma desejosa de viver na mesmice.

A chegada ao poder da parte dos muçulmanos surpreende François, a alguns de seus amigos, talvez toda a França. Aos poucos, as mudanças no modo ocidental de viver vão sendo sentidas: as mulheres abandonaram as saias e os shorts, as lojas ampliaram suas vitrinas de burcas, as taxas de desemprego caíram vertiginosamente com a saída das mulheres do mercado de trabalho, porque a família era agora o centro da organização social, similar ao que havia sido proposto pela teoria do distributivismo. Em parte, isso trazia bons auspícios para o público católico, que já não era muito no país e que passava a contar com uma força política capaz de conter os avanços de teorias decadentes como as críticas ao capitalismo e à moral dos bons costumes. De volta a Paris, é surpreendido por dúzias de cartas, as mais importantes e urgentes sendo as de seu seguro-saúde e as da Previdência. Entre elas, havia algumas sobre a morte da sua mãe, enterrada como indigente por não ter quem lhe assistisse os encargos funerários. A ausência de lágrimas era o testemunho de uma vida sem brilho nem sentido. Mais importante era a carta que noticiava sua aposentaria compulsória da universidade, com uma aposentaria de valor. Sua vida estava, materialmente, assegurada até o fim. Ao fim também chegara a vida de seu pai, e viu-se forçado a dividir a herança com a viúva do pai que ele mal conhecia. Sua vida estava, materialmente, assegurada até o fim. E, materialmente, era preciso ir satisfazer sua libido com prostitutas, seu único recurso de intercurso com mulheres nas atuais circunstâncias.

Não admira que Houellebecq tenha sido tão criticado por dizer ou supor tais coisas. Coisas que ninguém mais pensa, é o que dizem. O recomeço de vida de François, todavia, era uma forma de retomar alguma ordem, algum brilho ou sentido. Aquele constante terminar coisas sem brilho ou sem sentido precisava acabar para François. O fardo da existência fez seus olhos chorarem compulsivamente. Sua resolução apressada, dirigir-se à abadia onde Huysmans havia estado, apenas agravou o vazio de sua alma. Não via em si mesmo nenhuma afinidade com aquele mundo de orações e oblações. François é o símbolo da Europa decadente, vale lembrar. Sua inserção no mundo islâmico estaria, inevitavelmente, determinada pelo dinheiro, a mola propulsora da vida laica e burguesa. De volta à Sorborne III, com um salário três vezes maior, não havia crítica ou revolta que se levantaria contra a nova estrutura de poder. A denúncia de Houellebecq, dessa forma, não está numa islamofobia, como muitos denunciaram – está em revelar a fragilidade da cultura francesa, europeia, ocidental, frente a um projeto de civilização mais forte, porque insuflado por valores universais. A vida laica e burguesa do ocidente parece sem brilho nem sentido para existências que, como François acreditou encontrar no poeta e místico Huysmans, buscavam uma saída do túnel. A conversão de François ao islamismo é análoga a de Huysmans ao cristianismo – a submissão a um poder maior, à atmosfera de incenso e cera, que move e comove os de coração empedernido e enfumaçado a que se submetam ao sentido de viver só ofertado pela divindade. Se François é símbolo de uma cultura decadente como a nossa, ocidental, dizer o óbvio é a tarefa do escritor: não há cultura que por fraqueza não se submeta a uma mais forte.

Não admira que Houellebecq tenha sido tão criticado por dizer ou supor tais coisas. O admirável está em que não se diga ou se suponha tais coisas hoje em dia. Submissão é obra para corajosos.


Edição: Selo Alfaguara, Cia das Letras

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