Para uma reflexão sobre o anel e o poder
Giges e o Senhor dos anéis
Deixe-me
começar propondo a seguinte reflexão: por que falar de anel? O anel, dentre
suas possíveis simbologias, abriga a ideia de perfeição, de um todo fechado em
si mesmo e, por isso, sem qualquer falta ou imprecisão. O anel é a perfeição,
ainda, porque perfeito vem do latim perfectus que quer dizer
perfazer por completo, realizar algo em todas as direções e dimensões
possíveis, circunscrever, delimitar. O anel fecha-se em si mesmo porque de nada
mais precisa ou depende. Por isso, ele sugere, ainda, a ideia de eternidade,
sem início ou fim, sem partes ou etapas, mas um todo cujo significado está no
poder de ser pleno e completo. O anel é símbolo da perfeita satisfação.
Isso
posto, quero proceder a uma aproximação entre duas obras clássicas que lidam
com o anel em uma caracterização semelhante, ainda que em contextos diferentes.
Um clássico, é bom que se diga, é uma obra cujo valor simbólico apreende-se não
apenas em termos da própria geração ou período histórico em que foi publicada,
mais principalmente para toda e qualquer geração, de forma a servir como um
instrumento de avaliação da condição humana e de nossas aspirações nas mais
diversas áreas. Um clássico é uma obra imortal em sua significação, porque
rende a cada nova leitura a possibilidade de que se produzam outras e novas
interpretações, intelecções, significados. As duas obras que vamos aproximar
aqui são dois clássicos, porque ainda hoje produzem seus mais afeitos e
apaixonados leitores e estudiosos.
A
primeira delas é a República de Platão. O primeiro grande filósofo da
história ocidental deixou-nos uma obra vasta sobre os mais diversos temas que
estabeleceram o campo de análise e atuação da Filosofia até os dias de hoje. Em
sua República, o que está em jogo é a
possibilidade da justiça, na alma e na sociedade. Um tema demasiadamente
humano. Na República, o anel aparece no mito contado por um dos
interlocutores de Sócrates para simbolizar a condição dos homens comuns diante
da vontade de parecerem justos, ainda que não o sejam verdadeiramente. O mito
em questão é sobre o rei-tirano Giges. Leiamos o mito e depois façamos uma
reflexão sobre.
A
permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem
o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio. Este
homem era pastor a serviço do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo
dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo
fendeu-se e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Tomado
de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas que a lenda
enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas;
debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um
homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem
levar mais nada. Com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos
pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos
seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o
engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos
seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado,
apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível.
Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha
realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para
dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza,
conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao
palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve
assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um,
o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar
na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo
que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas
para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhões a outros e
fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo
assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E
citar-se-ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo por vontade
própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que
aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo
homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e
pensa isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém
recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem
tocar no bem de outrem, pareceria o mais infeliz dos homens e o mais insensato
àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns dos outros,
elogiá-lo-iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de se
tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer sobre este assunto.
(PLATÃO, República, II)
Pois
bem, no mito de Giges o anel é encontrado em meio a um fenômeno extraordinário:
o solo se fende por conta de um terremoto, e no abismo ali formado é que se revelam,
surpreendentemente, certos objetos maravilhosos, admiráveis. Dentre eles, havia
um cavalo de bronze, oco por dentro – e imediatamente lembramos do cavalo de
Troia, o estratagema dos gregos para derrubar os troianos de vez durante uma
guerra que já se estendia por dez anos. Um cavalo oco que trazia os gregos em
seu interior. O cavalo oco que Giges encontra trazia um homem dentro. Um homem
maior do que os homens normais. Talvez um gigante. O corpo morto do gigante
trazia o anel em sua mão. Giges, depois de se apoderar dele, não quis mais
nada.
É
estranho pensarmos que, em meio a tantos objetos maravilhosos, segundo nos
conta o mito, Giges não tenha querido se apossar de mais nada. O anel lhe era
suficiente. Sua ação estava, de certo modo, completa. Não era preciso mais
nada. O estranho é que ele mal sabia qual poder tinha aquele anel. Antes mesmo
de ser capaz de provar qualquer aspecto do poder do anel, ele estava certo de
que não precisaria de mais nada. Isso é interessante. Todas as outras coisas
maravilhosas que foram descobertas depois que a tempestade abriu uma fenda no
solo eram-lhe menores ou sem importância. Giges sentia-se completo.
É
apenas em um ambiente social que o poder do anel se revela. Durante uma
assembleia com todos os fazendeiros da cidade, Giges descobre, sem querer, que
o anel lhe permite tornar-se invisível caso ele gire o seu engaste. Para se
tornar invisível, ele deve girar o anel para dentro. Girando para fora, ele
retorna sua aparência. Pensemos um pouco. Voltando o engaste do anel para
dentro, Giges pode tornar-se inexistente aos olhos de todos. Com isso, vê a
todos mas ninguém o vê. Ele age sem que a causa de suas ações se revelem,
apenas os efeitos. Ninguém pode testemunhá-lo como causa daquilo que faz. Se o
giro é para dentro, podemos imaginar que se esteja aqui simbolizando a consciência.
Ele age mas ninguém sabe o que faz, portanto só ele sabe as intenções e as
causas de fazer o que faz. Ele, portanto, só recolhe como consequência dos seus
atos aquilo que vai em sua consciência. Não há quem o possa julgar de fora,
porque não há quem o veja realmente. E frente a esta possibilidade, tem-se o
problema posto pelo texto de Platão – Se suas ações não pudessem ser julgadas
por nenhum ser humano, o que você faria?
Ele
gira o engaste do anel para fora, e volta a ser visto. As causas de suas ações
podem agora outra vez ser dirigidas a Giges. Os olhos da sociedade estão sobre
ele. Nesse ponto, Giges volta a ser um de nós. O olho do outro impede que
façamos muitas coisas que desejamos ardentemente, ou por medo ou precaução ou
vergonha. Em uma imagem belíssima, Platão nos legou uma reflexão sobre o modo
como o outro provoca em nós um autoconhecimento. Seu Diálogo Alcibíades I traz Sócrates expondo a
maneira pela qual somos capazes de nos enxergar através das pupilas do outro,
olhando-o nos olhos e como que refletindo nossa imagem pelo olhar estrangeiro.
Não apenas estrangeiro, mas semelhante também. Na época, não existiam espelhos,
e as superfícies refletoras refletiam uma imagem borrada e muitas vezes pouco
definida. Os olhos de outro de nós era o lugar em que nossa imagem se deixava
ver mais satisfatoriamente. Sócrates indicava, com isso, que o olhar alheio é o
caminho para que nos conheçamos. Porque não é possível ter uma imagem clara de
nós senão por reflexo – por reflexão.
O
outro, desse modo, é não exatamente o nosso limite, no sentido opressor da
ideia, e sim no sentido de deixar mais claro a nós mesmos nossas próprias
ações. Quando Giges está invisível, ele anula o olhar do outro, portanto o
reflexo de suas ações e intenções. Ele está a sós consigo mesmo para saber
lidar com seus instintos e apetites, suas vontades e seus desejos. A pergunta
da personagem platônica se resume, assim, a estes termos: de que modo você lida
com as causas de suas ações, caso ninguém pudesse lhe imputar restrições morais
e legais? De que modo você está olhando para si mesmo em sua consciência, a que
ponto você é capaz de conhecer-se a si mesmo sem o olhar do próximo?
Giges,
no mito, dá vasão aos seus apelos físicos e emocionais. Cede às vontades mais
bárbaras e sem qualquer temor chega ao poder pelos atos mais ilícitos
possíveis. A personagem de Platão, ao concluir o mito, deixa-nos com a sua
percepção sobre os outros homens: todos fariam o mesmo, não há homem que, de
posse de um poder como esse, não quisesse abrir mão dos limites legais e morais
para realizar suas vontades. Giges, assim, é como nós: a dificuldade sobre a
qual Platão nos convida a refletir está em não sabermos lidar conscientemente
com a liberdade. Parece que a todo tempo se está consciente de que não se faz
determinadas coisas porque há o parecer alheio dos outros. Usar o anel é
realizar ações sem a preocupação com seus efeitos, com seus reflexos. O
problema é que nós somos as ações que causamos. Não apenas as causas, também os
efeitos nos dizem respeito.
Isso
é ainda mais visível na saga do anel de J.R.R. Tolkien. Em seu O Senhor dos Anéis, o segundo clássico
que nos auxilia nesta reflexão sobre o anel e o poder, a ganância e a ambição
estão latentes na natureza material do anel, de modo que ele desperta a
ganância e a ambição na natureza de quem o vê, admirado. Encontrar o anel é se encontrar
desejando o brilho do poder. Um brilho, por certo, quase irresistível. O mito
que Tolkien nos conta apresenta a justificativa para esse apelo admirável aos
nossos olhos. Leiamos o poema do poder, cantado em O Senhor dos Anéis.
"Três anéis para os Reis-Élfos
sob o céu, Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores, Nove para
os Homens Mortais fadados ao eterno sono, Um para o Senhor do Escuro em seu
escuro trono, Na Terra de Mordor, onde as sombras se deitam. Um Anel para
todos governar, Um anel para encontrá-los, Um Anel para todos trazer e na
escuridão aprisioná-los na Terra de Mordor, onde as Sombras se
deitam."
Os
anéis de poder, ao que parece, rondam o mundo fantástico de Tolkien. Há
indícios de que haviam outros anéis de poder, com poderes menores, além dos 20
de que falamos aqui. Estes, por certo, são os mais poderosos. Dezenove anéis
forjados pelos elfos sob a influência de Sauron. Na verdade, os três anéis
reservados aos elfos, criados pelo ferreiro élfico Celembribor durante a Segunda
Era com a intenção de lhes servir para curar,
construir e compreender, não tiveram a participação de Sauron, e por isso
conservam a energia benéfica do poder. Sobram-nos dezesseis anéis, partilhados
entre anões (sete) e homens (nove). Poderíamos entrar numa reflexão simbólica
dessa partilha numérica, mas deixemos essa reflexão para um outro momento. O
que pretendo destacar aqui é a influência sobre os anéis de poder exercida por
Sauron. É como se os anéis oferecidos aos anões e aos homens tivessem a ambiguidade
da energia élfica e da de Sauron, que encarna o adversário e o mal.
Depois
disso, Sauron forja para si, sozinho na montanha Orodruin nas terras de Mordor,
um anel para a todos governar. Para esse feito, Sauron teve de aplicar sobre o
anel toda a sua energia, motivo pelo qual acabou por ser destruído no momento
em que se viu privado do anel. Sua energia, desencarnada do corpo físico,
torna-se um olho gigante sem pálpebras, que anseia por reconquistar o anel e
com isso o seu poder e domínio. Não é difícil perceber de que modo Tolkien
indica as artimanhas do poder e a natureza do desejo de governar: há como que
um crescente desejo por mais poder, porque só é possível dominar os mais fortes
ao se impor sobre eles com força ainda maior. A caracterização de Sauron como o
mal indica o parecer do autor acerca dessa ambição: todo poder que almeja se
impor sobre as raças livres é um anseio por escravizar, e portanto é um mal.
Mas
o anel de Sauron, ou o Um anel, como ficou conhecido, escraviza seu próprio portador.
Com um acúmulo de energia ambiciosa por mais poder, portar o Um anel é se ver
aprisionado pela cobiça que denigre o entendimento e adoece a alma. É o
contrário daquilo que os elfos almejavam ao forjarem os outros anéis. O poder
do Um anel, materializado na capacidade de se tornar invisível, torna o seu
portador ainda mais visível pelos Názgûl, os espectros daqueles que corromperam
sua alma até ao ponto de se identificarem com o mal supremo. Usar o Um anel é
tornar-se invisível ao mundo material sem poder escapar das forças espirituais
que nos observam.
Quer
dizer, valer-se do poder do Um anel é ser invisível aos homens e visível aos
espectros do mal. Temos, com isso, um ponto interessante para nossa aproximação
das duas histórias sobre anéis de poder, em Platão e em Tolkien. Tal como no
mito de Giges, o poder do anel está em se fazer invisível aos homens, como uma
prerrogativa para obter o poder pela ausência do olhar humano sobre nossas
ações. O que em Tolkien fica ainda mais claro é que tornar-se invisível ao
olhar humano é tornar-se ainda mais visível ao olhar do mal. Seguindo a
reflexão que havíamos indicado antes, não levar em conta o outro que nos faz
enxergar melhor a nós mesmos enquanto nos servem de reflexo para nossas ações é
entregar-se ao completo desprezo de si por meio de um egoísmo automutilador. A
energia de traços malignos que domina o usuário do Um anel é resultante de suas
intenções malignas em se ver livre dos olhares alheios que limitam suas ações,
mas que no fim das contas deixam ainda mais notória a malignidade dessa
ausência de reflexo no outro. Exatamente por isso o Um anel é forjado pela
ideia de governar a todos: a ambição pelo poder soberano é a própria escuridão
que aprisiona a alma em sua maldade doentia.
O Um
anel não domina a todos facilmente. Há homens e seres mais fracos, para quem o
poder que ele possui facilmente se torna desejável e realizável. Mas há seres
de maior força mental e espiritual que não se deixam dominar facilmente pelo
poder da ambição. É por isso que em O
Hobbit Bilbo, que encontrou o anel perdido por Gollum, pôde guardá-lo por
anos, sofrendo como consequência da posse do anel apenas uma longevidade
invejável. É por isso também que em O
Senhor dos Anéis Frodo se faz o escolhido para recebê-lo, pela nobreza de
sua alma e de seu caráter. Mas mesmo o mais nobre dos seres não pode resistir
por um longo tempo o poder que emana do Um anel. Porque o poder corrompe: uns
resistem mais que outros, mas ninguém pode dominá-lo. É preciso, por isso,
destruí-lo. Só pela destruição do anel de poder pode o poder passar a ser
resistível. A forja do Um anel materializou toda a energia que move os seres
para a sede pelo domínio. Isso materializado, qualquer um pode se fazer vítima
de sua própria maldade. Porque no fundo a forja do Um anel materializa os
aspectos negativos e obscuros da alma. Destruí-lo é a única saída para os povos
voltarem a ser livres na Terra-Média.
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