Aristóteles, a arte e a beleza



Falar de arte em Aristóteles, segundo as preocupações modernas em Estética, é falar, como em Platão, de uma poética. O termo em grego poiésis correspondia ao que entendemos hoje como poesia, mas também todo tipo de artesania criativa e todo fazer de ordem material. Em Platão, o fazer poiético, por assim dizer, já se mostra poético, no sentido de uma atividade de produção de beleza através de um discurso inspirado. Na poesia, o logos se realiza como mythos -- que traduz a realidade por uma transfiguração divina, ou em termos modernos, que reapresenta o real sob o símbolo espiritual da imaginação criadora. Isso significa que o poeta não imita simplesmente o que expressa: o acontecimento da poesia é por si uma nova realidade, que condensa em seu acontecer uma multiplicidade de significações ao espírito humano em vista da beleza a ser contemplada na obra. De certa forma, a contemplação artística da beleza é a tentativa humana de recriar o admirável, contemplado na natureza.

Também Aristóteles parte da poética para apresentar sua visão sobre a beleza e a arte. O artista não procede simplesmente pela imitação do que vê: ele não é como o historiador, que narra os fatos como eles aconteceram, mas os narra através de uma simbolização das possibilidades e das necessidades universais, de modo a transfigurar um evento qualquer na sua expressão metafísica, quer dizer, naquela estrutura essencial que dá sentido à realidade e à vida humana, em seu desejo por conhecer o real, e que torna a obra para nós necessariamente uma condensação de vivênvias e de intuições. Pode soar abstrata demais essa descrição, mas fato é que no fazer poético percebemos estar em jogo a capacidade que a imaginação tem de produzir, por meio de uma representação mítica do mundo, a força inevitável da necessidade que rege nosso próprio espírito. Isso explica, em última análise, o traço de inspiração reclamado pelo poeta: ser inspirado é, no fim das contas, produzir um símbolo capaz de reapresentar o real sob a luz do essencial, do mesmo modo que em nós a imaginação atua produzindo imagens a partir da experiência sensível sob a atuação do intelecto. Isso traduz, igualmente, o modo pelo qual a obra encerra, em seu acontecer, uma outra realidade, tomada como real exatamente porque não diz literalmente a verdade, mas porque a verdade é o sentido de sua expressão simbólica.

Talvez fique mais clara essa elaboração conceitual a partir da análise de um caso concreto tal como Aristóteles, ele mesmo um filósofo predominantemente preocupado com a explicação concreta, fez sobre a tragédia. O teatro, enquanto arte e poética, é um acontecimento, tal como uma estátua de Apolo ou a Ilíada de Homero. A força dessa nova outra realidade advém do caráter mimético da arte em geral: ela representa e reapresenta o real sob o enfoque do universal, do simbólico. Significa dizer que a tragédia de Édipo, nas mãos de Sófocles, não almeja, ou não almeja apenas, reproduzir o que aconteceu, mas produzi-lo outra vez sob o enfoque daquilo que a torna necessariamente significativa a todo ser humano. A simbólica do apreço pelo saber a todo custo, da verdade como mais desejável que a paz e a ignorância, do destino que ao fim se faz inescapável, tudo isso condensam aquilo que o Édipo de Sófocles simboliza. O poeta traça sua personagem sob a luz do destino e da necessidade, do que há de universal e essencial ao destino de todos os homens. É isso que o torna artístico e estético.

A peça de Édipo, para continuarmos no exemplo concreto, pode ser decomposta em seus elementos de criação e de realização. Basicamente, Aristóteles dirá que a poética em particular, e as artes em geral, se diferenciam tanto pelo objeto reproduzido quanto pelo modo de reproduzi-lo, e por fim quanto à maneira da reprodução. Se esse traço mimético descrito até aqui indica a essência do que deve denotar uma arte, então a beleza deve ser encontrada nessa reprodução mimética. E uma mímesis bela será a que melhor traduz o universal simbólico na sua criação. Costuma-se entender a beleza em Aristóteles como vinculada à noção de harmonia, e harmonia como uma ordenação coesa e plena entre o todo e suas partes. O Édipo é belo, assim, porque a maneira e o modo de sua criação coadunam-se com o valor elevado do objeto imitado, condensando e expressando o universal da vida humana pela harmonia entre o mito e a sua realização teatral.

O poeta, tal como o artista, vale-se da imaginação para criar sua obra. A imaginação, em grego phantasía, é a dimensão da alma humana capaz de reunir e elaborar as imagens que nos chegam por meio da sensação/percepção. A própria natureza da imaginação, nesse sentido, é mimética: ela reproduz em nós uma imagem das coisas percebidas que não se confunde necessariamente com a coisa mesma. Quando o poeta cria arte ele vale-se da imaginação para elaborar o mythos em vista da beleza, como se na memória ele pudesse reunir as melhores expressões do que a sua imaginação é capaz de produzir. Essa diferença de grau face ao melhor projeta sobre a arte uma classificação semelhante a que se atribuiu a algo como sendo mais ou menos belo: tal como a inteligência humana depende de uma imaginação rica e bem servida de imagens (pois não há pensamento que não derive de imagens acumuladas na memória), uma arte expressará mais o universal em sua beleza à medida que puder condensar harmonicamente o maior número possível de significações, ou as significações mais valorosas. 

A tragédia, enquanto imita o homem mais elevado, alcança a máxima beleza quando expressa harmonicamente o que há de significativo em seu objeto e em sua arte. Mas não é porque uma tragédia represente um ser elevado, como o pode reproduzir uma escultura ou uma pintura, que ela terá beleza: a beleza depende da harmonia expressiva entre o conteúdo do mito e a forma do fazer artístico. É por isso, também, que uma comédia, caracterizada pela intenção de fazer rir ao representar tipos inferiores a nós e com isso feios de certo modo, pode chegar a expressar beleza, porque o faz com harmonia de forma e conteúdo. Um pintura ou um poema será tão mais belo, em critério aristotélico, quanto mais harmonia houver entre sua capacidade técnica expressiva e a elevação simbólica do que está sendo expresso ou reproduzido pela arte. O primado da imaginação na teoria aristotélica deriva, em último caso, da noção de que nós nada fazemos se não formos movidos por desejo e vontade: nem a sensação nem o intelecto tem a propriedade de nos fazer desejar, de nos mover o querer. A arte, desse modo, ganha destaque importante não apenas por aperfeiçoar nossas escolhas morais, como também por ser a primeira etapa de nossa obtenção de conhecimento. Não por acaso, a poesia é mais filosófica que a história. E poderíamos dizer, parafraseando o estagirita -- não por acaso, a arte é mais filosófica que a ciência.

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