Platão e a arte
A
arte grega, considerada em Platão sobretudo sob a perspectiva da poesia, é tida
como uma atividade mimética, de mímesis,
imitação. Esse modo de proceder poético conforma-se ao tipo de objeto a ser
imitado, de maneira a torná-lo representativo,
reapresentado pela arte. Mas essa reapresentação daquilo que se imita não
se destina a ser uma mera cópia, pelo fato de que não faz sentido duplicar a
coisa sem considerar uma finalidade que transcende a mera mímesis. A arte é imitação
com vistas, portanto, à apresentação da coisa imitada sob certos
aspectos que tornam o espectador capaz de tomar a coisa imitada pela coisa
mesma. Tais aspectos enquadram a percepção do espectador em uma finalidade
ao mesmo tempo de identificação da cópia e do copiado e de identificação da
reapresentação como uma nova percepção
daquilo que é imitado, como se a experiência artística iniciasse ela mesma uma
nova percepção. Por isso, o traço de representação próprio da mímesis constitui-se em nova experiência
daquilo que é imitado, provocada pela sugestão poética que persuade o
espectador de que os aspectos da apresentação poética são suficientes para
fazer ver ou para tornar presente o imitado.
Esse
caráter persuasivo da arte alimenta a esfera sensível da alma. Sendo esta a
parte humana mais disposta ao sabor do que causa dor e prazer, a arte lida com
o mostrar aquilo que aparece e, portanto, lida com a aparência de realidade. Para
fazê-lo, ela procura suscitar em seu espectador a experiência com o agradável
ou desagradável, propriedade da forma e do estilo poéticos, que transforma o
tema mais doloroso em algo agradável aos sentidos, ou vice-versa. Porque para
fazer a imaginação – território mental em que lidamos com as imagens e os símbolos
– assumir como sendo real uma cópia assumida, é preciso que o estilo
minimize as resistências mentais que temos para nos entregarmos à imaginação,
ao fantasiar, em vista do que se acredita ser verdadeiro. A força da arte está
em provocar a sensibilidade humana para um encontro com a fantasia assumida como
real, sendo assim experimentada, a ponto de ser possível sentir dor e prazer
diante de uma mera imagem que atualiza e reapresenta os aspectos e, portanto, a
aparência de uma coisa ou de um fenômeno. Arte é, nesse sentido, uma reapresentação fantasiosa assumida como
real que se realiza sensivelmente na intenção de mover o espectador para a
experiência nova a ser produzida.
É
então que se vê surgir a pergunta: para que arte? O que há na reapresentação
fantasiosa que nos é tão importante?
A
indicação platônica, circunscrita ao âmbito da experiência artística grega,
aponta para certa essência educativa
da arte: a imitação, por não se limitar a meramente copiar o representado, traz
ao espectador uma experiência sensível com determinada coisa ou fenômeno cuja
aceitação de sua realidade depende do grau
de beleza que ela expressa. Quer dizer, a mímesis de uma mesa de madeira reproduzida em um quadro, por
exemplo, não almeja ser tomada como real para que se chegue a pôr objetos sobre
ela, ainda que seu grau de perfeição sugira essa possibilidade, como as uvas
perfeitas pintadas por Zêuxis atraíam os pássaros desejosos em prová-las. A
representação artística não almeja uma utilidade
cotidiana, mas o poder de provocar o espectador a uma experiência outra com o
imitado, na medida em que a obra sugira, pelo grau elevado de sua perfeição
imitativa, um contato intenso com a contemplação
da beleza, sentindo, com isso, dor ou prazer pela agradável sensação de se
elevar, de ser conduzido acima da utilidade mais imediata da vida. A contemplação na arte é a realização plena
da alma pelo prazer de se deixar conduzir pela beleza fruída sem utilidade.
Significa
dizer que a contemplação do belo por meio da arte deriva de uma excitação dos
sentidos, mais do que do intelecto, pois traz como intenção última a elevação
da sensibilidade ao seu experimento mais excitante: provar o prazer
desvinculado de toda realização material possível à qual geralmente tende a
excitação física e o prazer sensorial. A arte, pelo jogo simbólico com a
imaginação, conduz da excitação dos sentidos até ao prazer incessante e
fulgurante da percepção da beleza por ela mesma. O belo seduz, absorve a alma
toda em um frenesi impulsivo que marca a disposição da vontade não para sua
realização, mas para sua manutenção e conservação, enquanto durar a contemplação.
É por esse caráter contemplativo que a arte mereceu o atributo sagrado de sua execução, e ao poeta a
alcunha de divino. Mais do que um
mero artesão, como se entendia o fazer poiético,
o artista produz uma reapresentação
material da perfeição dos deuses. Como dizia Platão (Rep. VI), o poeta ao criar olha ao mesmo tempo para as coisas
divinas e as coisas humanas, representando na arte criada essa realização
intermediária e híbrida que é a causadora da sensação da beleza em nós.
É
por esse motivo que ao poeta, tanto quanto ao filósofo, foram dadas a mesma
loucura (manía) divina que inspirava
sacerdotes e adivinhos. No Fedro, a
alma poética se vê enlevada pela Musa ao delírio da criação, de tal modo que o
filósofo é também arrebatado por éros.
Essa identificação faz do poeta e do filósofo as almas mais elevadas, por terem
desejado a beleza e a verdade. Em ambos, a força que a alma sente pela visão da
beleza se faz semelhante ao impulso erótico pelos corpos belos, porque a beleza é como que a face externa, a aparência
e a luminosidade da verdade. O impulso erótico conduz o filósofo à verdade,
pela contemplação artística da beleza. Nesse sentido, a arte é imprescindível para
o impulso erótico ao conhecimento, na medida em que conduz a alma do espectador
dos materiais da beleza até à sua fulgurante contemplação no conhecimento. É imprescindível
porém não inferior, como se costuma compreender, porque as duas atividades
dirigem-se ao que há de mais divino e superior em nós.
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