Apreciamos mesmo a literatura brasileira?



Não sei vocês, mas eu dificilmente me vi interessado em ler algum livro de literatura brasileira durante a juventude. Toda vez que o fiz, era obrigado. Isso, para mim, revela muita coisa. Contudo, duas delas 6são de extrema importância. Primeiro, um desgosto alimentado em nós por aquilo que diz respeito à nossa história. Vemos sempre com mais brilho o estrangeiro, o que vem de fora, quase numa complacência inversa a que diversos povos tiveram com relação a si mesmos. Os gregos chegaram a dizer sobre os que não falavam sua língua: são bárbaros, como a dizer 'incultos'; no pior dos casos, 'bestas sem civilização'. O termo ficou, embora com novas acepções. Uma delas se traduz, para nós, como sinônimo de alienação: pela incrível capacidade que temos de nos abrir sem reservas ao novo, ao que reluz em novidade, somos projetados constantemente para o futuro, de um modo a obscurecer nosso passado até fazê-lo esquecido de todo. Essa é uma arte que praticamos em quase todos os setores da vida brasileira, e que no fim das contas torna uma barbárie a tentativa de estabelecer aqui qualquer traço mais duradouro de civilização. Não temos história, a bem dizer.


O segundo ponto pode estar envolvido mesmo com a própria literatura, tida ou apresentada como desinteressante, sem maiores pretensões literárias senão a de contar casos amorosos ou situações de miséria, da vida louca ou monótona dos burgos à lástima sôfrega dos interiores. Ter a nossa literatura  como sendo mais atrativa é torná-la a nossa voz. Esse, de fato, é um desafio em nada menor que o primeiro, porém mais emergencial em vista de uma solução: porque se nos pusermos a conhecer e a se envolver com nossas letras e nossa arte, ainda que não haja nela o colorido atraente dos livros que nos chegam do estrangeiro, será de fato possível reaver nossa história, nossa cultura, em um ardor novo, voltado menos para fora e mais para dentro. É por isso que conhecemos muito pouco de nós mesmos, das forças instintivas e espirituais que determinam por aqui as instituições e a falta delas. Não duvido que deva ser por esse desafio que precisamos iniciar uma tentativa de conhecermos a nós mesmos. A nossa literatura contém os elementos que nos explicam como povo, como humanidade. Se a desconhecermos, não haverá outro modo de sairmos da barbárie.


O caso emblemático de Paulo Coelho ilustra o que aqui desejo indicar: o mais conhecido, traduzido e divulgado dos nossos escritores é alguém que produz uma literatura que não é de essência brasileira. Seus romances se passam quase todos no exterior, ainda que sejam personagens nossas. Dos mais lidos e vendidos escritores de todos os tempos em nossa história editorial, Paulo Coelho é a soma dos esforços publicitários em oferecer uma literatura de auto-ajuda, de sugestões e indicações espirituais, ao mesmo tempo em que projeta para fora de nossas terras seus enredos e as possíveis respostas para os dilemas e conflitos existenciais que, claro, todos nós temos. É mais uma vez a ratificação daquilo que há lá fora como sendo a última palavra acerca do que nos define, do que nos condiciona e, por isso mesmo, nos satisfaz. É sem dúvidas a mais recente e, não por acaso, polêmica manifestação de uma incultura literária entre nós, o que revela no fim a persistência de nossa fraqueza cultural. 


Somos ainda em grande parte aqueles índios encantados com roupas, joias e espelhos trazidos pelo homem português. E durante muito tempo, nossas letras tematizaram e refletiram os símbolos do índio, sobretudo como a encarnação de nossa raiz, de um senso necessário de brasilidade e, de certo modo, até de civilidade. Esquecer o tema do índio não nos faz esquecer aquilo que insiste em correr nas nossas veias, o sangue misturado com o do negro e o do branco, uma mistura que faz a nossa força. Quando dela nos esquecemos, ou a negamos, sucumbimos ao estrangeiro, ao alienante influxo das novidades e dos artefatos vindos de fora. Isso progride até a dura percepção de que um povo sem história e sem conhecimento de si é uma nação fadada a ser consumida por outras  consumida no sentido de consumadas, dizimadas, destruídas. Nossa saída está na literatura, na nossa literatura. Mas o paradoxo é que, sem um apreço devido pela nossa arte, corremos o risco de nunca apreciarmos a nós mesmos. É um desafio, que só a muito custo se pode vencer. Encontrar prazer com nossa história e nossas letras é o mesmo que tornar-se capaz de conviver consigo mesmo. A literatura é um caminho para desenvolver em nós todas essas qualidades e descobertas. Eu diria até que ela é o caminho.

Que neste dia possamos repensar nosso apreço pela literatura brasileira!

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