Pringle - Das Booty



O livro de Pringle não é uma biografia. Nem é uma ficção. Quando o autor se põe a recontar fatos reais vividos por ele ao lado do poeta brasileiro Bruno Tolentino, ele está inegavelmente dialogando com a sua consciência, revisitando a memória e, por meio do discurso plástico da arte literária, remodelando os fatos para oferecê-los como arte, ou seja, com técnica e beleza. O livro de Pringle é, pois, uma beleza. Um raro momento em que podemos, nós que já não temos a presença deste nosso grande poeta, conviver com sua destreza literária e sua transfiguração rapsódica. Porque Bruno Tolentino aqui é personagem, não poeta. E com isso, temos um homem de cultura ampla e elevada posto diante de nós quase como se sua nudez humana o transfigurasse para o tornar aquilo que ele foi, propriamente falando. Afinal, a arte literária, ao falar do poeta, poetiza sobre sua condição humana. O livro de Pringle é, no que diz respeito ao seu velho companheiro Tolentino, uma encarnação do poeta como homem.


É por isso que em Das Booty o poeta não se deixa ver em suas obras, mas em suas ações. O bruxo ali não é como o Machado de Assis, ao menos não é assim retratado, embora seus versos tivessem uma potência semelhante. Tolentino é bruxo de magia mesmo, a valer-se de consultas milenares como as astrológicas e as do I Ching, outras nem tão milenares como sua cartomante particular, consultas que antecedem os momentos mais delicados de suas empreitadas. Quando, porém, o cinto aperta e o barco ameaça naufragar, ele mesmo se põe em contato com seus guias, incorporando as divindades africanas, aprendidas em solo brasileiro e invocadas em terra estrangeira, só para indicar certas dissonâncias e contradições de sua personalidade. Afinal, Tolentino também é católico e não se prende à modéstia quando tem de anunciar possuir passaporte diplomático emitido pelo Vaticano. Os amigos e as pessoas mais próximas nunca sabem ao certo quando Bruno está mentindo ou dizendo a verdade. Um criador costumas de mitos é talvez a forma pela qual devia ele entender a atividade de todo poeta, a sua inclusa. E já dizia Hesíodo, as Musas que inspiram a poesia sabem dizer mentiras, e algumas verdades.


Um poeta mentiroso e macumbeiro, culto e supersticioso. Só aí já temos um emaranhado de notas para compor uma sinfonia. Mas há ainda outras notas. Em Das Booty, Pringle narra um caso curioso, mais pela excentricidade dos seus agentes que propriamente pelo ato em si: uma tentativa de traficar haxixe do Marrocos até a Inglaterra. Para isso, é preciso uma equipe que não será de longe a mais indicada. Um poeta que nada entende de navegação ao lado de seu jovem amante que de navegação sabe o mínimo, de um piloto paralítico e de um gago atrapalhado. Nada poderia dar certo nessa aventura trágica, se não fosse cômica. Cheguei a mencionar mais acima, metaforicamente, um barco ameaçado de naufragar. Na história de Pringle, porém, a metáfora tornou-se ameaça real, que não termina em tragédia por pouco. Seus guias e sua cartomante garantiram que o poeta chegaria a salvo em Oxford. Seus comparsas e a carga contrabandeada valeram-se dessa proteção especial para continuar ilesas. E no improvável do que poderia dar errado, as coisas não deram tão certo quanto se gostaria. Afinal, o poeta mentiroso e macumbeiro, culto e supersticioso, é o líder dessa empreitada de fôlego para traficar drogas e enriquecer com certa rapidez. Tolentino e seu jovem amante colorem a história real narrada por Pringle, naturalmente moldada e transfigurada pela arte, como deve ser. Afinal, o próprio Pringle deve ter sido um dos integrantes desse grupo. A riqueza de detalhes e o vigor das descrições iludem o leitor com a força de uma testemunha viva. Em meio aos poetas amantes e traficantes, Pringle mostra-se vigorosamente poético nesse romance de estreia. Sua poética é culta e supersticiosa. Poderíamos mesmo dizer: mentirosa, ainda que dizendo algumas verdades.


Uma poética mentirosa. Temos aqui uma formulação essencial da arte poética de Pringle, talvez da arte do poeta Tolentino, ou da arte poética em si mesma. Aristóteles dizia que a poesia almeja dizer o que poderia ter acontecido, o que chamamos de verossímil: parecido ou similar à verdade. É possível completar o filósofo grego e dizermos: o poeta diz o que poderia ter acontecido ainda que o tenha. A transfiguração de uma história real é a própria realização da arte poética. Pringle, portanto, molda suas memórias segundo sua arte. É um primeiro romance de tirar o fôlego, como uma toccata cujo virtuosismo se revela não em uma profundidade avassaladora, como um Stendhal ou um Proust, e sim em uma sutileza e simplicidade como as de um Flaubert ou um Camus. As referências francesas são propositais, para criar dissonância com o estilo e o humor típicos do inglês Pringle. As referências musicais não são, igualmente, menos propositais. O romance está permeado de letras e canções de um repertório Pringle-Tolentino, como se estivéssemos a acompanhar as aventuras do grupo, em mar ou em terra, ao som das bandas e dos artistas áureos dos anos 70. Um experiência maravilhosa. Como o é a maneira pela qual o autor nos deixa participar dos encontros do grupo, de suas aventuras e suas intimidades. É como se víssemos Bruno, ou Lúcio, compor versos bem à nossa frente, dedilhando as sílabas como se dedilha as teclas de uma toccata. Um virtuose. Uma música para os olhos que leem as páginas de Das Booty. Porque a leitura tem um ritmo que não destoa, que não desafina. As páginas de seu primeiro romance revigoram a paixão pela música das letras, como Tolentino tantas vezes fizera questão de ressaltar.


Mas o que se ouve e se vê não é o Bruno, ou Lúcio, transfigurado em poeta. É, bem ao inverso, como falamos, o poeta transfigurado em Bruno. Ou Lúcio, seu segundo nome, o nome pelo qual Pringle nos mostra o homem que amou. Ambos, Lúcio e Pringle, foram amantes nos tempos em que Tolentino era professor em Oxford. Ambos, professor e aluno, se envolveram em uma escandalosa relação de amor e de poesia. Depois de 40 anos, Pringle retorna às suas memórias e procura trazer, junto a nós, um Tolentino homem, aquele mesmo que ele conheceu bem, como o conheceram as personagens que compõem o grupo improvável de traficantes. Talvez Pringle estivesse lá, tendo visto e ouvido tudo de primeira pessoa. Mas a força e o vigor de sua prosa não se deve apenas a isso. Deve-se à técnica e à beleza pela qual ele recriou a realidade, fazendo-nos dela participar. E ali, seja no barco Mona Gorda, seja no Jaguar cor de rosa, participamos de um Bruno Tolentino humano, regido por suas paixões e contradições, por sua inteligência e cultura, por suas manias e superstições. É um Bruno por trás das poesias que dele conhecemos. Um Bruno tornado, para nós, Lúcio, seu segundo nome, mas não uma segunda personalidade. Porque de todas as mentiras contadas é preciso que reste a verdade de uma alma encarnada em versos, traduzida em palavras. A sua alma de poeta. Pelas cenas recriadas por Pringle, vemos sua alma, encarnada nas contradições do homem Lúcio, ou Tolentino, que para nós ficará agora na memória. O livro de Pringle não é uma biografia, nem ficção. É arte.


Edição: É Realizações.

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