Luís Soares - Conto de Machado de Assis
É de atormentar o espírito.
Machado de Assis é para poucos, mas devia ser de muitos, senão de todos. Se o
levássemos a sério nas escolas e nas casas, seríamos algo diferente de
medíocres. O fato é que somos tão medíocres quanto esse Luís Soares. Figura
típica de nossa terra, talvez de outras, mas da nossa sempre. Ainda hoje. O
conto de Machado data da coletânea de 1869, mas seria facilmente lido agora. E
ainda hoje haveriam de se identificar boa parte dos seus leitores. É de
atormentar o espírito essa genialidade perene de Assis. Também sua escrita não
deixa ver menos sua genialidade. É de surpreender como se lê pouco suas
histórias. Somos mesmo uns medíocres.
O conto narra os desvios da vida
de Luís Soares. Homem dado a gastar a fortuna com prazeres de juventude, ainda
que já contasse trinta anos. E por contar que a fortuna deixada pelo pai lhe
haveria de renascer sempre, pegou-se no fim falido. Ele que trocava o dia pela
noite literalmente falando, como meio de fazer a civilização perder força
frente ao império da natureza, não pôde perceber que era a própria sociedade,
na forma do dinheiro, quem lhe garantia o desfrute das benesses naturais.
Mas não é de se esperar muita
perspicácia de Luís Soares. Aconselhado pelo amigo a retornar à casa do velho
major seu tio, Soares pensou que humilhar-se como um filho pródigo o faria
outra vez conquistar uma riqueza que lhe permitisse desfrutar a vida sem ter
que trabalhar, depois que o velho morresse. Era preciso, apenas, humilhar-se,
pedir trabalho e arrepender-se da vida dissoluta. E tal como o pai da parábola
do Evangelho, o major recebeu o sobrinho com a suspeita de que o rapaz acertara
o caminho.
Em casa do tio, porém, vivia a
prima Adelaide, que lhe havia amado com a mesma intensidade pela qual ele a
desprezara como inoportuna. Em seu retorno, não demorou a perceber na jovem o
rubor da paixão a retornar, mas nele o desprezo e a indiferença continuavam
soberanas. O tio, a querer o melhor para ambos, chegou a sugerir ao sobrinho a
prima em casamento. O dote não era muito, mas o major partiria feliz dessa vida
ao vê-los casados. Luís Soares fez que iria pensar, mas desgostava da ideia,
porque ainda almejava herdar a fortuna do tio e voltar à sua vida de desfrute e
solteirice. Casar seria a maior das prisões.
Adelaide, igualmente, desgostava
da ideia. Havia sido seu maior desejo à época em que estava apaixonada, mas não
via sentido de entregar-se agora a alguém que não a amaria jamais. A chama
renascida aos poucos a iludia, embora a razão estivesse pronta para responder à
altura se preciso fosse. E não demorou a ser preciso, fatalmente. Um amigo de
seu pai, de visita à casa do major, surpreendeu a família a dizer possuir uma
carta ainda não lida que fora deixada com ele pelo falecido. Depois de aberta,
souberam todos que se tratava de uma fortuna a ser dada a Adelaide, desde que a
filha cumprisse o desejo do falecido pai: casar-se com Luís Soares.
As artimanhas do destino soaram
aos ouvidos de Luís como uma sorte dos deuses. Tornou na mesma hora seu olhar
para Adelaide, de indiferente em terno. Era a chance de haver novamente sua
fortuna perdida, ainda que ao preço do casamento, e com alguém como Adelaide,
que não lhe causava amor algum. A constante aproximação fez, em contrapartida,
Adelaide enojar-se do primo. Era evidente aquele apreço não por ela ou por sua
beleza, como ele chegou a dizer com os lábios, mas pelo dinheiro, como ela
denunciou com desprezo ao deixá-lo sozinho e de joelhos, na posição em que
esteve a confessar um amor impossível. Sua frase poderia servir de epitáfio ao
primo – Trezentos contos! É muito
dinheiro para comprar um miserável.
A vergonha da recusa lhe fora
maior do que a sentida naquela manhã fatídica em que se revelou sua miséria. Nem
o tio nem o convidado que trouxera a notícia da herança nem ninguém da casa
acreditava mais nas feições humildes do filho pródigo. Como se recontasse a
parábola, Machado de Assis aqui a pinta, naturalmente em tons tipicamente
brasileiros, aquela expressão que em nós é comum em face da necessidade de dinheiro.
O interesse corre no nosso sangue, mas um interesse que não é o daquela Éris
dos gregos, que podia gerar a disputa e a concorrência em vista do melhor
esforço, mas antes é um interesse mesquinho, desumano quase, capaz de dizer
amor a quem não se tem apreço algum apenas com vistas a conseguir uma quantia.
É de fazer o espírito atormentar-se!
Pois o espírito de Luís Soares
entregou-se à perturbação. Sem o casamento, a fortuna e a família – que no fim
decidira viajar pela Europa com a fortuna de Adelaide – o rapaz miserável
descobriu o lado mais terrível da solidão, aquele em que não há quem venha
acariciar, ou ao menos bajular por interesse. O que havia era apenas o
trabalho, esse império da sociedade sobre os anseios naturais que evitamos pela
falta de dinheiro. Talvez houvesse ainda, na cabeça, a frase da prima – Trezentos contos! É muito dinheiro para
comprar um miserável – ecoando retumbante.
Entregue à solidão, suicidou-se.
Os amigos da antiga, ao saberem de sua morte, não tardaram em curtir a noite em
tributo ao falecido. Pelos velhos tempos. Nenhuma missa, nada mais. O rapaz
Soares, atormentado pela sua miséria não apenas financeira, mas de alma, é
quase a outra face do filho pródigo, porque não arrependido senão quando sua
máscara cai. É uma tragédia que comove a alma mais pela espontaneidade da
descrição machadiana que pelo seu peso existencial. Afinal, parte de nós ali se
suicida.
Edição de Contos Fluminenses
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