Conto - Amanhã talvez seja tarde

Conto premiado 
Concurso Literário Sweek Tomorrow - 2017

[Melhor conto em Língua Portuguesa]


Link da publicação em Sweek:



Mesmo que a noite demorasse, a mente inquieta antes do adormecer, ele sabia que amanhã a veria. Era ela chegar ao colégio e o ar da sua graça enfeitiçar o garoto. Eram doze anos de pura sensualidade, pensou ele, que não tinha menos nem mais, exatamente a mesma idade, a mesma sala, só não os mesmos gostos. Ele era tímido, e ela gostava dos adolescentes mais descolados.

Mas o rosto daquela menina contagiava suas horas de estudo. Leandro suspeitou que as notas fossem uma boa forma de atrair o olhar de Helena, e estava certo. Sua nota máxima em matemática recebeu o elogio e o sorriso da musa inspiradora. Quando ela fez o convite para estudarem juntos, ele faltou cair de quatro, tamanha flacidez que a paixão causa. Só então soube que há muito tempo eram vizinhos.

A casa de Helena ficava a duas quadras da sua, uma casa alta e branca, tinha dois cachorros grandes e um vasto jardim ao fundo, com uma piscina que sempre fora o sonho de Leandro. O dia marcado para os estudos calhou de vir governado por um céu azul ensolarado, e a menina não resistiu a um banho antes de mergulhar nas equações da escola. Como Leandro não podia imaginar tamanha sorte, veio despreparado, e os gritos insistentes de Helena em chamá-lo para banhar-se eram quase o canto da sereia disposta a lhe devorar a timidez.

Estava apaixonado, mas não sabia ainda o que era paixão. Só descobriu mesmo o sentimento que se chama por esse nome quando flagrou Helena aos beijos com outro cara em sua rua. Ele agora tinha dezoito anos. Descobriu a paixão confundida por um anseio de vingança, uma raiva incontida que geralmente se nomeia ciúme. Paixão e ciúme são siameses. Ele queria Helena só para si e, pelo desejo frustrado, fora inevitável bufar em direção ao quarto e ali permanecer até que a noite lhe trouxesse o sono que apaga as dores.

O dia seguinte, porém, acordou nublado. Leandro pôs-se a ler poesia, aquela espécie de texto que a professora dissera falar algo sobre o amor. Leu Camões e Bocage, não almoçou, e só saiu da cama para o jantar, pois o pai fazia questão de que comessem todos juntos à mesa após sua chegada do trabalho. O silêncio à mesa não era novidade, o que eximiu Leandro de ter que explicar suas frustrações de amor. Depois do jantar, pegou o Werther de Goethe e não dormiu mais.

Naquela época, era comum os vizinhos crescerem achegados, por vezes as festas se faziam compartilhadas, uma grande família reunida em momentos festivos. O aniversário de Helena era sempre, para Leandro, a oportunidade de revê-la, depois da separação ao fim no colégio e o início da faculdade. Ela formara-se advogada, ele professor de Física. Se antes apenas a necessidade os havia aproximado, as festas agora eram um bom momento para trocar olhares e algumas palavras, além das horas que perdia, vez ou outra, admirando a amiga em seu perfil de uma rede social. Toda vez confirmava para si Helena estar mais exuberante.

Leandro também atraía olhares, e a bem da verdade é preciso dizer que muitas vezes os teve Helena sobre o amigo, quase a pensar que poderia ser que ambos ficassem próximos algum dia. O pensamento, porém, desvanecia-se. Leandro não fazia muito por reavivá-los na mente da amiga, tímido que era. Ele lhe rendia as poesias mais apaixonadas, os versos mais belos do que podia extrair de sua imaginação, mas nunca os mostrara, a ninguém. Mal sabia que Helena adorava poesias, lia de Homero a Hilda Hilst. Nunca, porém, tiveram qualquer conversa sobre poesia: ele por esconder sua devoção, ela por negar seu ar romântico.

Negava porque Helena valia-se da beleza para experimentar o amor em muitas versões. Com o tempo, Leandro percebeu na amiga uma tendência à libertinagem, ao desejo sexual sem arreios nem amarras, e já não podia mensurar o quanto saber aquilo lhe corroía a alma. Em meio a garotos e garotas, Helena suspirava por uma liberdade que Leandro não entendia, a não ser como rebeldia, como uma certa fruição de momento. Logo passaria, dizia para si mesmo, logo ela sentirá o desejo de amar alguém. Havia aprendido que todas as mulheres sentem o desejo de amar alguém. E ele estava decidido a esperá-la.

Só que a espera lhe rendeu um convite inusitado. Não era mais para o próximo aniversário de Helena, mas para o seu casamento. Mal soubera Leandro que a amiga estava de namoro com alguém, mas disseram os mais chegados que foi coisa de momento, como o relâmpago, que ilumina os céus e depois se vai. Correu para o perfil social da amiga, mas há muito ela nada postava. Agora ali, iluminada pela luzes da igreja, Leandro pôde entender o ser divino que habitava em Helena, que a tornava tão meiga e bela, tão sedutora e ao mesmo tempo tão terrível. Era a imagem do caos no centro de um mundo harmoniosamente floreado. Leandro levou-lhe flores, mas saiu antes de começarem a festa.

Feria-lhe o remorso. Se talvez tivesse se declarado a ela, se ao menos lhe tivesse entregado uma das dezenas de poesias que na calada da noite foram abastecidas de sonhos, se o seu gênio não fosse tão tímido nem arredio como um gato, se atrevesse a mostrar o que sentia, como faz um cão, talvez Helena não lhe escapasse assim. Fato é que agora, aos vinte e seis anos, perdia a vizinha e a musa de sua existência. Nenhuma outra mulher lhe ferira a tal ponto o peito de amor, nenhuma outra era algo mais que cinemas e camas.

Pensou havê-la perdido totalmente de vista. Pouca coisa encontrava pelas redes sociais. Os pais lhe haviam passado o endereço de Helena, mas não havia coragem para procurá-la. Era longe, mas a maior distância lhe fora causada por ser ela agora de outro, totalmente de outro. Sentia-se eternamente solitário, e a sensação levou-o a enfim sair da casa dos pais, pois se sozinho era, que o estivesse de fato. Não casou nem imaginava essa possibilidade. Havia mulheres, só não havia a musa de sua poesia.

E poesia houve no dia em que lançou seu primeiro livro. Aquela coletânea de poemas em tributo a eterna musa juvenil foram, aos poucos e com o passar dos anos, lapidadas pelo seu gosto cada vez mais equilibrado pelas leituras vorazes que fazia. Lidava com as palavras tão bem quanto com os números, só não era versado em expressá-las oralmente como fazia por escrito. Tímido não era em aula, mas na vida sofreu a miséria da falta de coragem para falar. Por isso seus poemas eram, segundo a crítica recente, tão vigorosos. Que bendita não seria a musa de um homem como esse, arrematou a resenha.

Foi quando lia ao jornal o parecer sobre seu livro que assustou-se em ver que uma mulher sentara à sua mesa no café em que estava. Sem pedir-lhe licença, ela cobria com as mãos o rosto, parecia chorar mas nada desesperador, era contida e elegante. Leandro a olhava com espanto, não sabia o que fazer. Depois de poucos segundos, ao desvendar o rosto, Leandro reconheceu Helena bem à sua frente. O espanto tornou-se surpresa; depois, inquietação. A musa de seus sonhos derramava lágrimas como nunca ele as imaginou ver. Num ato de total descontinuidade com sua personalidade, levantou-se como num salto e abraçou Helena com tamanha intensidade que a moça só pôde derramar novas e dolorosas lágrimas, talvez agora de gratidão.

Estava realmente feliz por encontrar o amigo. Narrou-lhe rapidamente o desenrolar de seus longos meses de recém-casada, lá se iam oito no total, esperou que Leandro se abrisse ao dizer sobre si e seus dias, e então fez conhecer a causa de seu lamento: havia engravidado e ela não o desejava. Disse-lhe ter vindo para as bandas de sua vizinhança disposta a despedir-se dos pais – por que despedir-se? Leandro não acreditou nas intenções suicidas de Helena, levou-a para o seu apartamento a fim de acalmá-la. Uma água, não, um vinho cairia bem, ela sugeriu. Havia bebido faz três dias direto desde que descobrira sua situação, o marido ia de viagem a trabalho, não contara nada a ele.

Leandro abriu a garrafa de vinho que tinha guardada, conversaram sobre a infância e o tipo de vida que cada um escolhera, o propósito, pensou Leandro, era fazê-la esquecer a ideia de tirar a própria vida. Mas uma ideia como essa não se esquece, e depois de alguns rodeios a intenção de Helena se materializou em justificativas sobre a estranheza que sentia pela vida de casada, o conflito em deitar-se com o marido e com outros homens, o desejo de viajar e percorrer o mundo conhecendo lugares e pessoas diferentes, provando de novas sensações e das mil e uma possibilidades que sabia fecharem-se para ela à medida que insistia no ser esposa e mãe.

Ele ouvia a tudo ora perplexo, ora confiante. Via uma Helena ainda mais adorável, por ser tão semelhante a ele, mais do que poderia ter imaginado. Seus olhos brilhavam, e ela de certa forma percebera, não deixando às escuras o amigo que sempre insistira em esconder-se.

– Você me ouve com um olhar tão apaixonado...

O comentário de Helena surpreendeu-o. Ruborizou levemente a face, escondeu as mãos, o suor escorria e esquentava a sala. Não soube o que responder. Por alguns segundos Helena parou a olhá-lo, como se esperasse a declaração a tanto tempo guardada, a sete chaves, no mais fundo da alma de Leandro. Ele permaneceu com o olhar pousado ao chão, o silêncio já ia constrangedor.

– Não precisa se esconder de mim, Leandro. Talvez amanhã você já não me veja mais, nunca mais. Por que guardar o que sente? Você sempre tão reservado...

Quando ele levantou o olhar, tinha lágrimas pela face. Helena achegou-se, foi a vez de levar um abraço forte ao amigo que aos poucos decidira pôr em palavras sua paixão antiga. Não era preciso muito. Levantou-se e deitou às mãos da amiga um exemplar do livro que trazia o nome de Helena na dedicatória e em inúmeros versos, comentou sobre a resenha que lia no momento em que ela apareceu, sobre como o resenhista desejava conhecer tal Helena, mas suspeitava que fosse, se não uma referência longínqua a Helena de Homero, apenas artifício de poeta, a escolher os nomes mais sonoros para as rimas. Leandro, porém, dava ali a ver o que o havia inspirado durante tantos anos. Helena segurou contra o peito o livro de Leandro, depois correu para abraçá-lo novamente, e então se beijaram, um beijo longo, beijo que era toda uma vida traduzida em lábios, em afeto, em carinho e fervor, paixão desmedida, louca necessidade de entregar-se ao prazer mais intenso que não o corpo, só a alma saberá sentir e desfrutar. Helena despiu-se, e Leandro tinha à frente, bem ali, a razão de sua existência, a musa de suas noites solitárias e amargas, mas também recompensadoras porque inspiradas. Traduziu sua poesia incontida em beijos cada vez mais quentes, tocava na pele os versos que lhe tiraram inúmeras noites de sono, não podia acreditar ter ali, aos seus pés, a mulher mais desejada em toda uma vida. A mulher, contudo, que não podia ser sua. De súbito, afastou Helena e suspirou fundo, vestia-se novamente, ela nada entendia nua ao chão ainda com o gosto de Leandro em sua boca. Seu peito disparado parecia quase abrir-se e o coração saltar de intensidade. Ambos afastados, reinou novamente o silêncio.

Até Leandro ser capaz de falar – Se não posso tê-la por uma vida, não a quero esta noite.

– Só me quer se puder me ter apenas para você?

– É assim ou nada me satisfará.

Helena vestiu-se sem pressa. Perguntou se podia levar o livro consigo, Leandro não objetou. Estava clara a intenção do poeta. Sua musa, no entanto, não poderia satisfazê-lo como ele havia imaginado. Nem tudo acontece como a gente deseja, disse ela, acho que saio daqui com essa lição. Ele sorriu ao vê-la melhor. Mas sentia no peito um novo remorso, não sabia se estava a fazer o certo, não sabia o que fazer.

– Minha esperança é de que amanhã a encontre, talvez, disposta ao amor que só eu tenho a lhe oferecer.

Foi a vez de Helena sorrir, agora mais feliz e confiante, apesar de frustrada – Amanhã pode ser muito tarde, meu amigo. Muito tarde.

Quando ela saiu, a revolta apossou-se do poeta. Derrubara as estantes que guardavam com um zelo invejável os livros que tanto amava, mas que não eram senão palavras, folhas e só palavras. A vida havia acabado de sair de sua casa. Quase lhe havia saído de seu corpo, se ele não se acalmasse pondo a caneta de encontro ao papel, a escrever sobre o sentimento que lhe dominou. Traduziu raiva e revolta em versos, e jamais pôde achar palavras iguais ou melhores que aquelas acabadas de nascer. Àquela noite, não dormiu.

No dia seguinte, andou a esmo pelas ruas, cigarro à mão, olhar vago e incerto. Seus dias em pouco tempo seriam uma mistura de marasmo e recato, novamente entregues à solidão e ao abandono de si. Não raro vasculhava a internet à procura de novidades, até encontrar o perfil de Helena atualizado com as fotos do filho ainda pequeno, o marido ao lado, felizes em ter nos braços o garoto cujo nome faria Leandro cair aos prantos sem raiva, nem revolta. Helena havia homenageado o filho com o nome do amigo. Tributou-lhe em retribuição o apreço que recebera pela obra de Leandro. Cada qual homenageou o outro com o filho a que fora capaz de dar à luz. Leandro, em sua solidão, sentiu o peito aquecido.

A criança crescia em encanto, e Helena ia sempre mais bela. O amigo passou a acompanhar a rotina de ambos, falaram-se inclusive vez ou outra, mas nada que transpusesse o caminho da empatia, do carinho, da amizade. Estava feliz por ela não o haver rejeitado, imaginava que seu orgulho poderia ter sido ferido, mas estava enganado. Helena sempre mostrara tanta maturidade mesmo muito nova. Aquela criança estava em boas mãos. Tornou-se um belo jovem, a bem da verdade, e Leandro, já com os cabelos brancos a sublevarem sua antiga aparência juvenil, não lamentava o fato de ao menos ter podido ver de que maneira a beleza de Helena havia de se materializar em um rebento, mesmo que não fosse seu.

Os anos deixam a mente menos apressada para julgamentos, a quem aprendeu o respeito pelo outro quando a vida florescia. Estava ele feliz em ver a amiga e sua família, as viagens e fotos de aniversários e formaturas, ela já idosa mas nunca menos atraente. Leandro, apesar de tudo, ainda a amava. E agora entendia o que era amar, não uma paixão juvenil, sempre entremeada por ciúmes, ideias de posse e alucinações. Amar é respeitar no outro aquilo que ele é, sem que para isso queiramos dominá-lo, ao contrário. Ele a amava porque a queria bem, ainda que lhe estivesse à distância, ainda que no fim da vida ela se arrependesse de não ter vivido seu amor e lhe rogasse para que juntos voltassem aos tempos áureos, tempos que já não voltam mais.

Pois o tempo é vilão, dos mais traiçoeiros. Chegou o tempo em que a tristeza não seria só uma sensação causada por lembranças passadas, chegou a tristeza e o desespero quando Leandro, ao abrir sua rede social, deparara-se com uma mensagem de Helena, um acidente havia tirado a vida do marido e do filho, e ela encontrava-se hospitalizada. Tudo aconteceu tão depressa que não pôde sequer avisá-lo antes, talvez seus pais tivessem tentado avisá-lo, mas não tinham notícias do filho há tempos. Ele mesmo suou frio com este pensamento, talvez sua mãe ou seu pai tivessem morrido e ele não soubesse de nada. Mas poderia continuar indiferente à Helena? Poderia condená-la por só agora, quase cinquenta anos depois, ver-se solitária como ele, a lhe pedir amparo e afeto?

O reencontro causou surpresa a Leandro, que tivera a beleza da amiga obscurecida por tantas cicatrizes no corpo e na face. Desde que ela o havia procurado à beira do suicídio, jamais pudera imaginar algo de tão ruim como aquilo que ali presenciava. Helena estava acabada, física mas sobretudo emocionalmente. A vida parecia-lhe perdida, e Leandro, segurando-lhe a mão, não surtira efeito maior que o dos calmantes de que fazia uso. Disse-lhe o médico que aos poucos ela recuperaria a força para voltar a andar e a viver, pois a única coisa que a impedia era sua própria tristeza. E ele estava triste ao seu lado. Sorria, mas não conseguia ser franco.

Apenas o amor fizera com que permanecesse ali, até que dois meses depois Helena ganhasse alta. Leandro a convidou para ficar por um tempo em sua casa, cuidaria dela como se fosse a sua mulher, ainda que isso não fosse viável. Helena segurou as mãos do amigo, uma energia como nunca ele sentiu, e só pelo olhar ela transparecia sua recusa ao convite. Estava voltando à casa dos pais, e disse ainda ao amigo, seria bom que você procurasse os seus, pois sua mãe não anda bem. Deixou Leandro ali, à frente do hospital, em silêncio e solitário, como sempre ele esteve durante todos esses anos, e como ficaria até que a morte lhe viesse tomar.

Os pais de Leandro deram a notícia a Helena com um pesar comovido, mesmo por um filho ausente como ele tinha sido. Ausente de amor, dissera a mãe. Não amara nem a si mesmo, e a morte foi um remédio. Helena, que ainda tinha guardado o livro do amigo, depositou-o junto ao túmulo de Leandro, esperando que aquelas palavras pudessem amanhã ser esquecidas por ela, como nunca ela se esqueceria da felicidade perdida em um acidente, uma felicidade que talvez não imaginasse fosse tão especial em sua vida até perdê-la.

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