Shakespeare - Otelo

Otelo y Desdémona por Muñoz Degrain, pintura de 1881



Otelo, o mouro de Veneza, é quase, poderíamos dizer, um ignorante em terra de maliciosos. Digo quase porque ele sabe que sua lealdade e honestidade não são só duas das virtudes mais apreciadas entre os gatunos, exatamente pelo tanto que eles mesmos delas se afastam, mas são também os adereços com que se vestem a pureza e a beleza cobiçadas de Desdêmona. A virtude, como o sol, parece situar ao redor de si os mais errantes espíritos viciosos, dispostos a tudo para brilhar sem luz própria ou para obscurecê-la de vez. O pior dos vícios é como um eclipse solar que não só obscurece a virtude, mas a torna incapaz de se diferenciar de outros vícios. O pior dos vícios, em Otelo de Shakespeare, é Iago.


A tragédia tem início com Iago a mostrar sua natureza maquiavélica. Indignado por não ter merecido assumir o posto de tenente que almejava, pretende armar uma cilada para os responsáveis por aquela afronta. Estão sob sua mira o seu senhor Otelo e Cassio, o tenente escolhido em seu lugar. É possível suspeitar que também Desdêmona lhe esteja à vista. De todo modo, a trama se forja quando Iago e Rodrigo se aliam para macular a honra dos três. A primeira investida é informar ao pai que a bela flor de Veneza, até então insuspeita, ingênua e pura, tramou contra ele casando-se com o mouro às escondidas, sem seu consentimento. De fato, o casamento havia acontecido, mas a versão dos fatos induz a que tropas sejam enviadas para livrar a jovem das mãos de um crápula e feiticeiro Otelo. A versão dos fatos é fazer de Otelo um embusteiro, valendo-se de magia para iludir a pobre e imaculada Desdêmona.

Se uma jovem feliz, suave e bela,
É tão infensa às bodas que fugiu
À corte dos mais ricos dentre os nossos,
Haveria jamais (pra ser chacota)
De fugir da tutela pro negrume
De um peito como o teu, que só traz susto?

Há um racismo aqui evidente. Quando, porém, o casal é encontrado e levado à presença do Duque, tudo se explica. A honra de Otelo se mantém, pois o amor de Desdêmona fora conquistado pela mesma ingenuidade com que conquistara o dele. O Duque, cioso de ver as provas além de meras palavras, não pôde senão louvar aquele casal, apesar de enganado o pai. O pai, confortado pelo coração apaixonado de ambos, não pôde senão aconselhar Otelo ao final: se tem olhos para ver, cuide-a, sim:/ pode enganá-lo, se enganou a mim. Embora desculpado frente às acusações impróprias, era preciso prevenir-se contra os sortilégios da paixão, de que são mestras as mulheres mais ingênuas. De todo modo, esta primeira investida de Iago soa como um fracasso a um olhar mais ingênuo.

Valendo-se da mesma ingenuidade, Iago articula seus próximos passos. Agora saídos de Veneza em missão de guerra no Chipre, nossas personagens se veem lançadas a um ambiente de novidade, até então hostil aos costumes venezianos. Em território de guerra, os ânimos são mais facilmente irritados. E é assim que Iago consegue fazer com que Cassio macule sua honra. Posto em guarda pelo senhor Otelo, entra bêbado em uma briga, acordando a cidade já adormecida, inclusive seu senhor. É deposto do cargo de tenente até segunda ordem. Iago avançou uma casa. Cassio, inconsolável, cede à sugestão de Iago para que suplique à Desdêmona uma interseção a seu favor junto a Otelo. Sua audiência com a senhora é a porta de entrada para que se costure os percalços que se os avizinharão em um falso intercurso. Iago avança mais uma casa.

Não seria difícil fazer ver um caso entre Cassio e Desdêmona. As súplicas que a mulher assume diante do marido serão aos poucos transformadas em símbolo de uma paixão encoberta, a ser revelada pelos enlaces que Iago costura com os requintes de uma cerimônia de consagração. Espírito, pra agir, precisa tempo. Urdindo a imagem de uma Desdêmona puta, empenha-se em confundir a mente e o coração de Otelo, aturdindo-o com o ciúme.

E faço o mouro, grato, por amor,
Pagar-me por fazê-lo egrégio asno,
E perturbar sua paz e paciência
Até a loucura. É isso; está confuso,
Mas safadeza só se vê com o uso.

Existe uma vinculação estreita entre a paixão e o ciúme. Poderíamos dizer que o ciúme surge na exata proporção em que sua ingenuidade o faz acreditar na inocência da amada, na pureza de sua intenção em vê-lo entregue e ao entregar-se junto plenamente. O ciúme é a transformação da suavidade do encanto pela agressividade do engano. É a ebulição da mesma paixão que arde sem se ver, só que dirigida não para afagar a amada nos braços, mas para afogá-la de vez até perder a vida. Porque a mesma finalidade exclusivista que se encontra na paixão faz arder também o ódio do ciúme, na medida em que torna inaceitável ter a mínima sensação de dividi-la com outro. O outro, como um rival, recebe do fogo da revolta uma dose semelhante a que se dirigiu à amada, como alguém que subverteu as leis do amor e maculou a sua virgindade. O fogo que Otelo sente consumi-lo arde o peito com um desejo ambíguo em ver Desdêmona entregue em seus braços, por prazer ou sem vida.


Iago aqui avança. Se as palavras do pai da flor de Veneza parecem retumbar na mente do confuso Otelo, sua honestidade ainda latente preserva-o de acreditar apenas em palavras. Quero provas, exige como exigira o Duque. Iago articula então que o lenço perdido por Desdêmona, dado por Otelo a ela como símbolo de fidelidade, seja encontrado no leito de Cassio, a prova que era preciso. Otelo, ao sabê-lo, encontra-se desnorteado. Está fora de si, impaciente e louco. As súplicas que a mulher continua a lhe fazer, para que restabeleça o cargo de Cassio, são provas outras que se somam ao descalabro das ideias que povoam sua mente. Está acabado. Agride a mulher com a mão e com palavras em frente à visita recém-chegada de Veneza. A honradez tão falada pelos venezianos em Otelo já não lhe pertence mais. Enquanto Iago orquestra a morte de Cassio, seu senhor prepara os braços a fim de estrangular sua amada: tem de morrer, senão trai outros (...) mesmo com mil vidas/ minha vingança alcançaria todas.


Mas o primeiro falha e vê-se pego a tramar tantas desgraças. A pior delas ecoa do quarto de Otelo. Morta sobre a cama pelas suas próprias mãos, a mulher que sua vida iluminou desfalece-a. A mulher de Iago, Emília, que ouve os gritos da senhora, chegou tarde para o desfecho. Indignada, reprova Otelo, o senhor mais negro demo, por deixar assim brincarem com seu amor, levando-o à morte. Fora enganado pelas tramas de Iago, diz Emília.

Sua força para ferir não é metade
Que a minha para sofrer: tolo, simplório,
Pior que ignorante; fez um ato...

Otelo, tendo revelada sua tolice e ignorância, não aguentou a vergonha. Aquela virtuosa honradez que tanto lhe era louvada só poderia levá-lo à morte diante de tamanha culpa. Porque a ignorância é o pior dos males. Iago, malicioso, fez jogar com a inépcia alheia. A ingenuidade, despreparada para a malícia do mundo, é traço de barbaridade em meio à civilização. Porque no mundo não há pureza que subsista. A obra de Shakespeare, ao ilustrar essa verdade, revela na natureza humana sua maior virtude possível: nem se regozijar pela inocência paradisíaca, nem se arrogar uma malícia impecável. As palavras finais de Otelo antes de ferir-se de morte ilustram a descoberta que as duras penas, só em meio ao sofrimento, ele pode alcançar:

Falem de mim qual sou; não deem desculpas
E nem usem malícia. Falem só
De alguém que, não sabendo amar, amou
Demais.


Livro: edição Nova Fronteira

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