Goethe - Fausto I



A primeira parte da tragédia de Fausto apresenta-se como uma representação daquelas inconformidades humanas dirigidas a si mesmo e à ordem estabelecida. A personagem título vê-se envolvida com os poderes malignos quando sua natureza inquieta faz pulsar no peito o anseio em escapar da mediocridade ao seu redor. O saber humano, os mais elevados a que Fausto se dedicou por dez anos a aprimorar em seu ofício de doutor, não são senão fantasia e aparência, insatisfatórios para quem deseja o conhecimento divino. Já no Prólogo do céu é assim que o gênio Mefistófeles o descreve ao altíssimo:

Do céu exige o âmbito irrestrito
Como da terra o gozo mais perfeito               (v. 305)
E o que lhe é perto, bem como o infinito,
Não lhe contenta o tumultuoso peito.


Essa dicotomia Fausto sente dentro de si, como se lhe fossem duas almas, uma que o aprisiona à terra, às coisas materiais e às suas sensações, outra que o quer elevar aos céus infinitos. Entre o prazer sensual e o intelectual gravita sua insatisfação, por certo ao se dar conta da distância entre as vias nas quais se realizam – alienadas de qualquer síntese possível. Em diálogo com um estudante, Fausto indaga-se se talvez uma possível síntese não estaria no declive profundo que a natureza, já dizia Heráclito, ama esconder. Ainda, neste momento da tragédia, acreditando haver uma forma de alcançar a essência do real em sua realização plena, vê-se decidido a relegar seus saberes ao abandono. Seu ofício de professor é inútil e malévolo, por ensinar aquilo de que nada sabe sem trazer qualquer luz ao mundo. A ciência não lhe satisfaz como satisfaz seus olhos a beleza de uma jovem. É preciso abandonar bibliotecas, ossadas e fósseis para descobrir um novo Eu que brota pela pujança da viva natureza.


O caminho é o mesmo de tempos passados: deve-se recorrer à magia. Para Fausto, por ela os mistérios últimos da natureza serão traduzidos em fórmulas transcendentes, leis gravadas por um deus, como a imagem do Macrocosmo que ele contempla em um livro. O doutor busca, no entanto, não uma metafísica de livro, mas de viver. É preciso escapar a estes signos criados pelo homem, e buscar o Incriado. É preciso trazer os signos à vida! Por eles, invoca então o gênio da terra, que lhe aparece como se ali surgisse por engano: desaparece ainda mais de repente, ao negar que esteja destinado ao zelo de Fausto, como imaginara o doutor. O seu gênio é outro, e lhe há de surgir transmutado a partir do cão que lhe fazia companhia. É Mefistófeles quem dá-se a ver, vestindo a face de um pobre estudante – às ordens do senhor, vai dizê-lo a Fausto.


A inversão aqui é marca da relação que se estabelecerá entre Fausto e Mefistófeles. O doutor é posto como senhor do gênio maligno, que neste mundo lhe será um estudante-servo fiel. Desconfiado daquela essência de cão de súbito revelada, ainda que soubesse tê-la por naturalmente servil, pede-lhe o nome, e o gênio lhe cede um enigma no lugar, pois nomes, como signos de coisas, não são mais do interesse de Fausto, entregue que está à busca dos mistérios da viva natureza. O enigma por si esconde sua resposta como esconde a natureza o seu Ser, atiçando a inteligência inquieta a revelar por inteiro o que se oculta: sou parte da Energia/que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria. Eis aquela parte que se revela por inteiro: o Gênio sou que sempre nega (v. 1338). É como se a inteligência, para desvendar o mistério, tivesse que trilhar o caminho da negação. A referência ao mito do Éden chega a ser indicada durante a cena no Quarto de trabalho – o lugar por excelência onde o homem de saber costuma aplicar-se aos mistérios. Mas sendo preciso exercitar a negação, o mistério da natureza só se revelará se o quarto de estudo, como se fosse uma cela, for negado como o Éden foi negado pelo casal decidido a conhecer. É fora do Éden que o homem descobriu-se; fora do quarto, Fausto irá tomar para si o mundo que Mefistófeles está disposto a lhe oferecer.


É preciso sempre negar. Negando a vida inútil a que se vê entregue, Fausto renega seus anos de doutor para tornar-se um com seu gênio, vestido de estudante. Ser um com seu gênio é, pois, colocar-se como um aprendiz nas mãos de quem possui o conhecimento almejado, numa inversão que aponta por ironia o doutor como aluno. Antes, porém, de aventurar-se lá fora em aposta com Mefisto, o seu Quarto situa-se como o lugar em que se estabelecerão os motivos do pacto entre os dois. A sequência das cenas no Quarto já nos indica a mudança no espírito de Fausto, menos enlevado pela divindade essencial por trás da natureza e mais aterrorizado pela angústia que a vida lhe desperta, e que o faz lamuriar, ao fim, por um pesar em existir. (v. 1544-1571)


Em todo traje hei de sentir as penas,
Da vida mísera o cortejo.
Sou velho, pra brincar apenas,
Jovem sou, pra ser sem desejo.
Que pode, Fausto, o mundo dar-te?
Deves privar-te, só privar-te!
É o eterno canto, este, que assim
A todo ouvido vibra e ecoa,
Que a vida inteira, até o seu fim,
Cada hora, rouca, nos entoa.
Só com pavor desperto de manhã,
Quase a gemer de amargo dó,
Ao ver o dia, que, em fugida vã,
Não me cumpre um desejo, nem um só;
Que até o presságio de algum gozo
Com fútil critiquice exclui,
Que as criações de meu espírito audacioso
Com farsas mil da vida obstrui.
Também à noite, com receio,
Terei de me estender no leito;
Também lá, foge-me o repouso, alheio,
Sonhos de horror me angustiarão o peito.
O Deus, que o ser profundo me emociona
E me agita o âmago em que mora,
Que acima de meus brios todos trona,
Não pode atuar nada por fora,
E da existência, assim, o fardo me contrista,
A morte almejo, a vida me é malquista.



Os impulsos latentes em abdicar da vida, a desencadear uma avalanche de malquereres e de maldições em sua boca, provoca no coro de gênios, a presenciarem sua revolta, um lamento pelo niilismo de sua alma. O torso em fúria do Fausto doutor é o despontar da desgraça preparada por Mefistófeles desde seu encontro com o altíssimo, a reverberar sem dúvidas o início do livro de Jó – a aposta, aqui, entre Fausto e Mefisto é antecedida pela outra feita nos céus. Na ocasião, o altíssimo, irreverente, não se importa com o que o gênio maligno anseia fazer com seu servo Fausto, pois independentemente da trilha de maldades a que o faça seguir, ao homem de bem, na aspiração que, obscura, o anima, /Da trilha certa se acha sempre a par (v. 329). A promessa de mostrar-lhe a luz é a prova do zelo divino ao seu servo maldizente e revoltoso. Porque sua alma, embora entregue ao desespero, anseia a ver a essência divina. Por certo, nem o próprio Fausto suspeitaria de sua bondade, fissurado que está em ver seu mundo virar de ponta cabeça. É por estar absorto em sua angústia injuriosa que a oferta de Mefistófeles soará sedutora.

Obrigo-me, eu te sirvo, eu te secundo,         (v. 1656)
Aqui, em tudo, sem descanso ou paz;
No encontro nosso, no outro mundo,
O mesmo para mim farás.


Fausto, arrefecido em seu afã espiritual, desacredita de qualquer outro mundo possível além deste volátil existir, sendo-lhe as palavras de Mefistófeles por isso meros gracejos de uma farsa que a seus olhos estão a representar. Fausto, como ele sugere ao final da primeira cena ao Quarto de estudos, acredita estar a sonhar uma segunda vez. Mas não se trata de sonho ou farsa, posto que o gênio lhe exige com sangue a assinatura do trato. Pouco lhe importa. Seu peito, de todo o saber curado, quer para si a intensidade do viver em toda a sua profundidade, na dor e no prazer, porque se há uma coisa que o pode regozijar é experimentar neste mundo transitório o prazer sem termo, como uma árvore que de dia em dia se renova, apesar dos frutos podres (v. 1686-7).

Se vier um dia em que ao momento
Disser: Oh, para! és tão formoso!    (v. 1700)
Então algema-me a contento,
Então pereço venturoso!

Toda a ânsia que Fausto demonstrou frente aos influxos dos gênios da natureza traduz-se ao final pelo que poderíamos caracterizar como sua escolha por fazer viver apenas uma daquelas duas almas que ele dizia trazer em si. O descontentamento com a ciência e o saber promove a perda de sentido em agir, que o leva a desejar esta vida imbuído de um amor supremo, um amor fati, dirá Nietzsche menos de um século depois, como se a alma, condensada em seu corpo, pudesse agora expressar toda a riqueza do que se é pela intensidade do próprio Ser considerado em sua totalidade. Mas não da totalidade metafísica, dirá Mefistófeles, pois aquela só convém a um Deus. A nós, gênios e homens, estão reservados os dias e as noites infindas. A Fausto, que durante seus curtos anos de vida nunca pôde achegar-se mais ao Infinito, só às delícias terrenas importa aspirar. E não será outra aspiração que mais agradará a Mefistófeles. Feito o trato, o prometido será ofertado: no fim sereis sempre o que sois (v. 1806). A eternidade do Eu em sua vida de dores e de prazeres ressoa aquela ideia do eterno retorno do mesmo, de que tanto Nietzsche rogará a paternidade. Torna-se mesmo de um interesse renovado apreender as relações propositais entre o filósofo e o seu poeta. O próprio Fausto, filósofo, vê-se associado ao gênio, poeta, desejoso por instruí-lo. Sua instrução é, ironicamente, um deboche do homem de estudo que agora Fausto deixaria de ser.

Digo-te, um tipo que especula,        (v. 1830)
É como besta, em campo árido e gasto,
Que à roda um gênio mau circula,
E em torno há verde e fértil pasto.


Por não ser mais doutor, e por haver se tornado um com seu gênio, Mefistófeles se faz passar por Fausto a fim de atender um jovem estudante, interessado em introduzir-se ao ensino superior, que acaba de bater à sua porta. A cena que se desenrola ainda no Quarto de Fausto, construída em referência aos ensinamentos da época, tece com ironia um jogo de contrastes entre as personalidades que já havíamos indicado, e que favorece a que se entreveja, pela nova condição de Fausto, de que tipo é o novo teor de vida a que Mefisto alude ao fim da cena – uma retirada do Quarto para a Taverna, como quem escapa de um retiro a que estava longo tempo aprisionado. É a iniciação de Fausto ao seu novo território: o mundo dos prazeres.


E não há prazer maior nesse mundo do que seduzir uma bela moça. Seus olhos, atraídos pela imagem da bela mulher que lhe aparece ao espelho na cozinha da bruxa, inflamam o desejo da sua carne, que será rejuvenescida após a poção que obterá. Fausto, já um doutor maduro, não abre mão apenas de seu conhecimento inútil, mas também de sua própria maturidade. Ter trinta anos a menos é o caminho pelo qual Mefistófeles anseia fazê-lo tomar parte no gran teatro del mundo – por ser esta a idade mais propícia ao delírio dos sentidos, à entrega com sangue e suor ao instante, ao martírio em sofrer do mundo toda sua contradição. De saída do encontro com a velha do caldeirão, Fausto anseia por rever aquela belíssima donzela que no espelho se lhe mostrou ser a razão de todas as suas aspirações, ao que, ironicamente, Mefistófeles não deixará de pontuar: Com esse licor na carne abstêmia,/ Verás Helena em cada fêmea (v. 2603-4).


A visão de Margarida, que não parece lá uma Helena, é a primeira e derradeira prova do efeito da poção da bruxa sobre o corpo de Fausto. Aprisionado pelo encanto da moça arredia que o despreza pela audácia será o convite que Mefistófeles esperava para pôr o então jovem doutor a seus pés – porque a condição de serviçal do gênio no fundo era o paradoxo do poder que Fausto não pôde desvendar: um poder que está a seu serviço para fazer-lhe as vontades torna-se, no mesmo instante, o seu senhor. A alma tiranizada pelos desejos e anseios de prazer exige satisfação com a urgência de um soberano sem possibilidade de contestação. Do monólogo de Fausto, deixado a sós no quarto da moça, uma frase resume seu espírito: só me impelia a sede de gozar (v. 2722). Margarida, que em sua juventude está igualmente ferida na carne pelo desejo, se compraz pelo adorno que encontra em seu quarto, imaginando que paixão galanteadora havia lhe oferecido tão incomum presente.


Mas a doce Margarida, que de pecados, di-lo Mefistófeles, a achou inocente, é recatada demais para ocultar semelhante adereço de sua mãe, que imediatamente fareja ser algo de muito impróprio a uma dama como sua filha. A saída então é intermediar o encontro pela vizinha, recaída sob os encantos de Mefistófeles, que agendará um passeio a quatro no jardim. Enfim dispostos ao galanteio, Fausto e Margarida dão-se as mãos, como se o gesto fosse a própria representação do contato mais íntimo a que vislumbram em futura entrega. E se a donzela não sente senão tremor e um arrepio, o jovem doutor ergue sua poesia para lhe descrever a paixão.

Não estremeças! Que este olhar,
Que esta pressão da mão te diga
O que é inexprimível:                                        (v. 3190)
Dar-se de todo e sentir na alma
Um êxtase que deve ser eterno!
Eterno! sim! – seu fim seria o desespero.
Não, não, sem fim! sem fim!


A força do amor perturba a ambos. Fausto, que sozinho louva o gênio que a natureza pôde revelar-lhe através dos belos olhos de Margarida, perturba-se pela presença de Mefistófeles, a gracejar com o belo par de gêmeos que a moça traz sob a blusa, porque na verdade o jovem doutor não parece estar plenamente consciente de que tudo aquilo que está a sentir veio-lhe por intermédio de Mefistófeles. Sua crença é na ilusão, magia, delírio, e Mefisto, como alguém de carne e osso, não poderia ter feito algo tão sublime. O gênio, assim, só pode troçar de tamanha estupidez: E, aliás, o gosto não te estou negando/ De te iludir de vez em quando (v. 3297-8). Lamenta pela inocente Margarida, completamente apaixonada pelo sujeito conquistador que Fausto se tornara. Este breve momento de atrito entre senhor e súdito revela muito do que a trama ainda trará para o jovem doutor.


Mas também revela a tragédia que aguarda a pobre donzelinha. De alma pura e santa, inquire o amado sobre sua religião, lamentando tão bom homem andar em companhia de um espírito mal como Mefisto. Fausto não se exime em descrever os detalhes da sua crença naquele que é inominado, que se confunde com a natureza e as forças cósmicas, o máximo de elevação espiritual a que se vê capaz. Porque seu interesse mais está em poder deitar-lhe ao peito, alma em alma. A mãe a mataria se lhes descobrissem, lamenta Margarida. Há uma solução: uma poção que com três gotas em fundo sono a envolverão. A donzela consente. Não há o que por ele não venha a fazer. Seu amor puro macula-se. Matar a mãe para satisfazer seus desejos igualou amante e amado. Na boca de vizinhos, vê sua honra debochada após a noite de prazer com Fausto. O lamento de Margarida à frente dos muros da cidade é de um lirismo impactante. Seu irmão, que anseia por lhe defender a honra, apesar do assassinato, é morte pelo punhal do amado. Sua família, assim, é dizimada por sua paixão. Impura e maculada, adentra a catedral em busca de uma expiação para a alma de sua mãe. Os espíritos lutam pela sua. Oprimida pelo calor da angústia e do pavor, desmaia aos pés da vizinha, sua cúmplice.


O cúmplice de Fausto terá agora sua noite de maravilha. Em Valpúrgis, as loucuras e os prazeres se reúnem em festa, como se celebrassem o renascer da fantasia e da lassidão. Em meio ao mulheril e aos gênios de toda espécie, Fausto sente o peito constrangido a ver em cada lugar o rosto de Margarida. É mágica, desencanta-o Mefistófeles: cada um vê nela a sua bem-amada (v. 4200). Mas a ilusão persiste inviolável. Nenhuma outra voz de mulher o encanta. E levantará sua voz aos céus ao saber que sua donzela fora feita prisioneira – por sua causa. Mas Fausto acusa Mefisto, não a si mesmo. Aniquilar, dirá o gênio maligno, o inocente que os enfrenta, é o modo pelo qual tiranos aliviam seus pesares. Está consumada a loucura do jovem doutor.



A cena final do cárcere é mais que só o reencontro entre dois amantes: é a própria realização da alma tirânica em sofrer as dores dos sabores a que se viu entregar-se como escrava. De nenhum modo se poderia imaginar uma melhor dialética entre senhor e escravo, como disposições latentes no espírito humano. Fausto deseja ainda salvar a amada, mas Margarida, que de início não o reconhece, ao saber estar de novo frente à sua paixão envolve-se na culpa que tem de suportar, ela acredita. Fugir não é possível. Entregue às mãos do carrasco, Margarida vê escapar a vida que já não encontra mais razão de ser, senão em rendê-la ao único poder a que deveria ter se mantido fiel. O Celeste Poder do Pai no eterno trono é o destino a que almeja agora. Fausto, sem sua amada, salva-se por Mefistófeles, o único poder a que havia se entregado em vida. Esta seria apenas a primeira de suas dores de amor e de prazer.

Imagem: Faust Ilustrated, Faust and Margaret

Livro: edição editora 34

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