A poética de Hesse



A poética de um autor se funda, basicamente, em sua expressividade e em sua cosmovisão. Ou seja, entender um autor é reconhecer não apenas o estilo pelo qual ele se põe a tecer seus enredos e suas reflexões, mas também a mensagem que serve de pano de fundo às suas obras. As diferenças de estilo entre os autores situam-se quase sempre nesta dinâmica de composição entre forma e conteúdo. E, não raro, é a cosmovisão que determina os mecanismos da escrita.


Comecemos, pois, pelo princípio. No caso de Hermann Hesse (1877-1962), sua cosmovisão está, muito visivelmente, atrelada à tensão entre, de um lado, o mundo de funções sociais, mundo burguês, citadino, formal, ocidental, e do outro, o impulso pela vida sem amarras, vida boêmia, natural, apaixonada, oriental por contraste. Por vezes, ele parece louvar este em detrimento daquele, mas a melhor da sua carga poética encontra-se na capacidade de fazer sustentar a dialética tensional sem pender demasiadamente nem para um, nem para outro lado. Porque a vida humana exige que essa tensão se sustente, sem a qual ela padece e atrofia.


Dos melhores exemplos dessa sua dialética é seu livro Narciso e Goldmund (1930). As duas personagens que dão nome ao romance são exatamente os dois lados dessa moeda hesseana, ilustrando como que dois pólos da sua alma em luta. O enredo tende, todo ele, a servir como espécie de símbolo para o caminho do equilíbrio. Mas o equilíbrio só seria alcançado em O jogo das contas de vidro (1943), sua obra magna, esplendor de sua maturidade, em que imagina uma cidade futurista dedicada ao saber imortalizado na arte do jogo das contas de vidro. Esse equilíbrio para Hesse significa, no fim das contas, encontrar a seriedade no jogo, o divino no mundo, o racional no instintivo, o humano no animal. A dicotomia tornava-se, assim, um convite à entrega não a um dos lados, mas ao prazer de vivenciá-los mutuamente.


Antes do equilíbrio, porém, sua alma lançou-se à perturbação e à loucura dos instintos. Demian (1917) que inaugurou a entrega de Hesse ao sabor desregrado da vida, ilustra bem a força poética e lírica que sua obra carrega. A busca pelo equilíbrio depende da prévia revelação daquele outro lado, que geralmente permanece obscuro em quem se acredita soberano face aos conflitos humanos. Em Demian, o lado obscuro da cultura humana se revela. Em seguida, sua força poética expressa o divino que nutrimos em nós em Sidarta (1922), cujo enredo, inspirado na história do iluminado Buda, segue seu próprio percurso, o caminho para a plenitude da alma na simplicidade do saber.


Posto diante desta dicotomia outra vez, seu impulso ganha, para expressar-se, um novo símbolo, uma nova imagem de si: O lobo da estepe (1927) é a síntese algo grosseira, mas revolucionária, de um ideal de vida entregue ao sabor de sua máxima realização. Ser lobo é dotar-se de um caráter bárbaro e sem amarras, uma espécie de liberação das regras sociais para o mergulho em sua essência encoberta. O lobo é um mergulhador, e o que descobrirá ao fundo é um despertar do sono alienante para enfim ver-se a si mesmo. Acordado, Hesse descobriu-se um solitário rebelde. No fundo, sempre o fora. Expulso da escola e saído de sua terra e de sua parentela, encontrou em seu exílio na Suíça e em suas viagens ao Oriente a realização que esperava obter. O prêmio Nobel recebido em 1946 atestou aquilo que todo leitor de Hesse compreende sem dificuldades: suas obras "exemplificam os ideais humanitários clássicos e as altas qualidades de estilo". O bárbaro havia sido laureado por sua rebeldia.


Sobre essas altas qualidades do estilo, é importante dizer umas palavras. A expressividade de Hesse é, digamos sem redundância, expressionista. Significa dizer, suas palavras ganham o peso e a leveza da paixão e da serenidade, enlace e desenlace entre trama de sensações e textura de reflexões, às vezes descendo aos sentimentos mais abismais, ou subindo às ideias mais abstratas.

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