Cinema - Interestelar



Já aviso que não sou um aficionado por ficção científica, muito menos por histórias intergalácticas em que os viajantes encontram seres viventes em outros planetas, tão ou mais inteligentes que nós -- quase sempre mais inteligentes que nós. Sempre fui, porém, um apaixonado pelo universo, por seus sistemas e planetas, pelo sol e por buracos negros, pelas imagens de outras galáxias. A Física como um campo de saber esteve presente no melhor de minha formação, uma matéria em si mesma fascinante por traduzir, aos meus olhos, a abstração matemática em fórmulas de compreensão dos fenômenos à minha volta. Talvez por isso aprecie bem mais filmes como Gravidade e não os da série Star Wars. Certamente por isso Interestelar me fascinou.


Um encanto, porém, que transitou do fascínio pelas imagens de viagens espacias, de um lado, à tese que ressoava latente durante todo o desenvolver da trama, de outro: a tese de que somos nós, e apenas nós, humanos, que existimos de fato nesse vasto espaço cósmico. Aqui não aparecem as famosas menções a seres extraterrestres, nem sequer à possibilidade de sua existência. Assume-se desde o início que o homem é o único ser inteligente, a exercer seu domínio racional até onde sua capacidade o permitir. A razão humana e sua luta por sobreviver é o grande tema do filme. Sua presença em cada momento da trama é semelhante à atmosfera que nos envolve: invisível, porém vital.


A vida humana está marcada, em Interestelar, pelo dilema de sua condição: valer-se da razão para sobreviver ao destino que condenou o planeta em que vivemos por nossa própria racionalidade. Em um mundo onde nossa existência é soberana, há que se encontrar uma outra Terra, tão habitável quanto este nosso planeta decaído. O ímpeto humano quer se alastrar pelo universo, porque para isso ele se sente destinado. Se a natureza voltou-se contra nós em nossa terra, é preciso por natureza buscar uma nova. A razão, ao mesmo tempo que nos destrói, é a única chance de nos salvarmos.


Mas a razão nos engana, conscientemente ou não. O problema do engano chega a ser adotado como uma questão de porcentagem: para lidar com o mundo dos seres emocionais como nós, por exemplo, o robô de AI foi programado com 90% de sinceridade. Por certo, é bem mais que muitos homens alcançam. Entre nós, o engano e a mentira tem finalidade. Sua abolição é eliminar a razão de seu poder. Os antigos já diziam ser mais sábio o que mente conscientemente que o mentiroso inocente: simplesmente porque este não sabe a verdade, é incapaz de avaliar seu próprio engano; aquele, porém, ao poder dizer o que é certo ou não, sabe estar enganando e por isso tem o poder da verdade. Talvez haja sempre uma razão para enganar. O certo é que a razão sem esse poder perde-se a si mesma.


No engano são traçados os planos de salvação da espécie humana. Enganados, os habitantes da Terra desconhecem o poder que se articula para livrar o homem de seu fim. Mal sabem, ainda, que muitos dos fenômenos estranhos que lhes acometem, e que por vezes os relacionam a fantasmas, espíritos ou divindades, não são senão outros homens, a interferirem no espaço-tempo enviando-lhes anúncios e mensagens. O divino está quase que completamente ausente do filme. E isso é retumbante: nada mais sonoro à ideia de ser soberana a inteligência humana que eliminar qualquer vestígio de outras a ela iguais ou mais desenvolvidas, seja a de seres extraterrestres, seja a de deuses.


Sozinho na imensidão cósmica, o homem mergulha em seu próprio desespero. A razão o engana, e se faz preciso ouvir novamente as emoções, a intuição. Enganados pela promessa de uma outra vida além morte, desconfiamos de que a divindade não seja senão uma ilusão dimensional. Mas não apenas os deuses eram astronautas em Interestelar: nossa salvação também depende de seu domínio cósmico sobre novos reinos a conquistar. Um domínio que tem de ser secreto: tem de estar em oculto aos olhos da multidão cuja salvação planeja.


Talvez a razão tenha mesmo um poder capaz de se estender a outra terras. Não duvido, contudo, que ela continue a nos enganar. Só que um engano consciente: ao homem, não será jamais dada a possibilidade de provar inocência, porque ele conhece seus limites, sabe que há poderes que o transcendem -- e se os ignora, é em vista de pôr a si mesmo como soberano onde não é mais que poeira cósmica. A razão nos engana, mas ela é a única que pode nos mostrar a verdade. No fundo, enganamo-nos a nós mesmos quando recusamos o que sabemos. E sabemos não ser a razão soberana como Interestelar a imagina.


Mas a razão, já dizia Camus e sua constatação do absurdo da existência, é nossa natureza, nossa condição e dela não podemos escapar: é preciso estar consciente de nossos limites, de nossa ganância, de nossa torpe e megalomaníaca racionalidade. Porque só conscientes dela podemos escapar ao desfecho trágico de uma vida entregue à ilusão e ao engano. A razão nos salva porque mostra a verdade. E a verdade, queira o homem ou não, é que ele não pode escapar de sua condição. Lançando sua própria sorte ao espaço, a espécie humana em Interestelar planeja salvar-se da miséria a que se viu condenada. À espera do destino que a liberte do absurdo, mesmo que esse destino não seja senão um espelho de si mesma.

Testo postado originalmente em 28 de setembro de 2015 (site pessoal)

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