Dostoiévski - Memórias do subsolo



O livro Memórias de Subsolo de Dostoiévski é uma autópsia da alma moralmente decaída, do subsolo que quase sempre escondemos da vista dos demais pelos inúmeros papéis que representamos, pela aparência das relações e dos hábitos. É um abrir-se às angústias que se escondem na maldade que trazemos na mente, no esforço desmedido que fazemos para parecer bons, quando na verdade só o que temos é dor, mágoa, mesquinhez, vilania. Mas algo temos a mais. Nem tudo é só mágoa ou mesquinhez. É possível que haja alguma salvação ao homem que viva do subsolo. Por certo, deve ser preciso levar o olhar com coragem e diligência ao mais íntimo de nossa miséria, com a esperança de que então se dê, com coração, por misericórdia, o alívio de tão grande baixeza. 

O livro é um castigo correcional. É a forma que um homem, amargurado pelo seu temperamento histérico, encontrou para se vingar de si mesmo. Isso porque nada é pior ao histérico do que o não haver quem lhe ouçam as agruras. Na ausência de alguém a ouvir-lhe a miséria, porque todos já se afastaram, porque ele mesmo já as expulsou com sua mesquinhez e ignorância, com sua vilania, há que se voltar para si mesmo, para recontar suas memórias. E para isso é preciso coragem, no dizer de si para si mesmo o quanto sua vida fracassou. Mais coragem ainda está em escrevê-las, em de algum modo torná-las acessível a qualquer um, conhecidos ou não. "O papel tem algo que intimida", diz o narrador. A coragem de se pôr a escrito é a maior das virtudes do poeta. Aos quarenta anos, o autor das Memórias é o narrador de si mesmo para quem quiser vê-lo e em seguida repudiá-lo ou admirá-lo. Sua escrita é a prova do castigo pela vida não vivida com virtude, a prova de que ao menos lhe sobrou a nobreza de se mostrar, de se oferecer ao julgamento dos olhares alheios - ainda que o único olhar que lhe reste seja o de Deus. 

As Memórias de Subsolo se dividem em duas partes. Na primeira, o narrador procede a uma reflexão sobre sua natureza tacanha, sobre a vil sensação de que no fundo cada um esconde seus fracassos por vergonha em ser o que é, demasiado humano. É preciso refletir sobre a causa de tamanha ignomínia, de por que tanta maldade ou para que tanto pavor de si mesmo. O fosso se abre e de lá sai o mal cheiro sustentado por nossos hábitos, pelo status e pelo silêncio, Pois que a alma fale, então! E o que se ouve é a sinceridade de alguém que não pode se esconder de si, que não pode fugir de sua condição reflexiva. Ao menos o homem dado à reflexão não o pode. Porque existe uma diferença entre o homem reflexivo e o homem prático. Talvez a boa ventura de um homem prático, diz-nos a narrador, esteja exatamente na ausência um tanto terrível de sua consciência: a ele não se impõe o reflexo de sua imagem, a visão de suas próprias entranhas não lhe é possível. Ao homem prático não é dado refletir. Eis a vilania dos homens de reflexão: estamos por demais visíveis a nós mesmos!

Se há um reflexo, no entanto, permissível em sua crueldade exatamente porque evidente e claro, este diz respeito ao contraste entre nós, homens de reflexão, e os tais homens práticos. Por serem ausentes de reflexão, eles estão privados da angústia que nos fere ao procurarmos as argumentações e  as demonstrações mais firmes para provarmos o óbvio: que no fundo ninguém presta. O homem prático não está posto diante de sua miséria, e por isso não deseja se justificar. Ele apenas vive a "vida viva", não a literária, não a forjada de ideias e de reflexos. Essa aparente virtude, contudo, esconde o pior dos vícios. Sua vida não é um poço, mas uma superfície. É com homens assim que a segunda parte das Memórias, ou seja, aquela parte propriamente memorialista e não reflexiva, aquela parte por assim dizer prática e não reflexiva, traz seu embate, a fim de revelar com ainda mais evidência, e como que por contraste, o seu próprio subsolo.

A aflição em desejar e repudiar o oficial que lhe despreza, o encontro com amigos de infância em um jantar de alta classe, que lhe faz descer ao abismo da repulsa de si em se mostrar tão indigno de estar ali que ao fim da noite, já bêbado e desonrado, se vê na cama ao lado de uma prostituta em um bordel de quinta categoria, a quem paga o mais belo dos sermões mas de quem não se faz digno de satisfazer o amor: tudo isso sinaliza o fim da segunda parte como uma evidência prática da miséria refletida do narrador. É o passado que fundamenta e justifica o presente. Somos a história de nossos atos e  de nossas escolhas. Não se pode fugir do passado sem que se fuja de si ao mesmo tempo. A vida dos homens práticos, a "vida viva" e não a dos livros, é um talento que não lhe foi dado. A virtude dos homens de reflexão não está em viver a melhor vida, mas em poder refletir que vida poderia ser essa. 

Aos quarenta anos, o autor tece sua própria condenação aos olhos do leitor. E é preciso coragem para fazê-lo. Talvez trate-se aqui do próprio Dostoiévski. Talvez sua novela lhe tenha sido mesmo o próprio castigo correcional de que ele se achava digno. De todo modo, quer seja o narrador ou Dostoiévski ou nós leitores, está oferecida, pela escrita, nossa culpa e ao mesmo tempo nossa redenção por misericórdia: se pôr a escrito seu subsolo é torná-lo de algum modo solene, ao oferecê-lo para o julgamento dos olhares alheios, a redenção se revela no abismo da solidão. Ao final da autópsia da alma, não se ouve voz alguma senão a da própria consciência que nos aponta para a verdade. Verdade não ignóbil, por certo, pois não há como dela escapar. O homem reflexo, o do subsolo, o paradoxalista, não deseja continuar a falar do subsolo. Suas memórias continuarão, certamente, mas regidas agora pela luz que fez brilhar alguma dignidade em si mesmo. É o narrador que, ao se justificar, nos deixa com sua lição mais importante:

"E, no que se refere a mim, apenas levei ao extremo, em minha vida, aquilo que não ousastes levar até a metade sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos a vós mesmos. De modo que eu talvez esteja ainda mais "vivo" que vós. Olhai melhor!"

Edição: Editora 34

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