Stendhal - O vermelho e o negro



Desde o título, o livro de Stendhal simboliza uma dicotomia: quer seja a oposição política entre liberais e jacobinos, entre republicanos e monarquistas, entre nobres e burgueses, quer seja um fosso que parece separar metrópole e província, nobreza e populacho, vida exterior e interior. Em meio a tantas dicotomias sociais, Julien Sorel irá encontrar muitas outras, estejam elas ou não abrigadas em seu mais íntimo apelo de alma, na luta entre a miséria da vida real e o ideal a que se entrega. Seu ideal reside em Bonaparte. É na figura de Napoleão que Sorel sustenta as dicotomias que o levam a superar sua miséria. É preciso conquistar o mundo! Os ares de conquistador, como se fizesse parte do exército pessoal de Napoleão, conduzem Julien a fazer de seu talento com o latim a arma mais letal para abrir os caminhos que, socialmente, lhe estavam bloqueados. Independente do que as cores do vermelho e do preto possam suscitar à imaginação, é certo que os contrastes da vida humana, embora delimitados no romance ao período histórico da França do século XIX, são o tema central desta obra de Stendhal. 

E de contrastes é feita a própria narração do autor francês. Transitando com invejável sutileza e desenvoltura entre a vida exterior e interior de suas personagens, O vermelho e o negro traça para o leitor o campo de batalhas em que se travam as relações humanas e a convivência que alimenta a alma consigo mesma, fazendo ver as disposições dos exércitos, as estratégias e as perdas em meio às conquistas que causam, em toda a guerra, admiração e temor. Como um dos escritores mais reverenciados pela crítica, Stendhal estabelece neste livro, com a crueza da honestidade e da intimidade que é também sua, os artifícios em que se enreda o espírito humano face às alegrias e às desgraças pelas quais tem de passar, não sem ponderar sobre a desejável riqueza que deve haver no seio do homem que almeja tornar-se melhor, apesar das agruras que o meio social lhe impinge. Em páginas de rara beleza, o nu da alma é descrito e prescrito como saúde e autonomia da vida que se quer superior. Stendhal nos mostra mesmo que o próprio do homem de valor é impor-se a si a norma moral de tornar-se superior: sem esse esforço, não importa tamanha riqueza ou nobreza, é-se sempre um pária, um populacho, um ser desprezível. 

Para não ser desprezível, Julien Sorel precisa, de muitos modos, conviver com a hipocrisia a rondar as relações humanas. Hipócrita é o que somos, é o que determina que sejamos a soberba e o egoísmo daqueles meios sociais. Independente de onde se esteja, a hipocrisia é a imagem no espelho de nós mesmos aos olhos alheios, dos alheios ao nosso próprio olhar. O inferno são os outros, disse depois um outro francês. Que haja uma disposição infernal nessa convivência regada à falsidade e desamor não parece surpreendente: surpreende é o amor humano por essa forma de viver. Não se pode viver sem os outros, poderiam dizer muitos sociólogos ou psicólogos. Mas o fato de odiarmos essa convivência porque nela nos colocamos a odiar uns aos outros é coisa que melhor não foi descrita senão por Hobbes, em sua fantasia de um estado de natureza. Se o homem é o lobo do homem, por que não assumirmos a natureza de lobo de uma vez? Por que a vida em sociedade precisa perpassar tantas máscaras, tantos embustes – tanta hipocrisia? O que faz de Sorel homem de valor, no fundo, é perceber a hipocrisia que reina soberana sobre os homens e sobre ele mesmo; é percebê-la e reunir forças para torná-la patente, para mostrá-la aos que desejam negá-la ou ocultá-la. O homem superior, não podendo fugir dessa hipocrisia geral, é aquele que faz de tudo para livrar-se dela pondo-a constantemente diante dos olhos. 

Mas a sociedade não entende o que seja uma tal superioridade. A sociedade é a própria imagem da fortuna de bens e da miséria de valor. Poucas são as vezes em que a equação troca os termos. O primeiro caso de ascensão de Julien é essa equação invertida. Ele não passa de um larápio sem modos e sem dignidade adentrando a casa do sr. De Rênal, o prefeito de sua cidade e um homem de valor. A dignidade do prefeito não é, porém, uma unanimidade em sua alma: também ele está às voltas com a politicagem de sua província, e contrata Sorel apenas para que seu arqui-inimigo não o faça. Inserido assim em meio aristocrático, Sorel apreende sua própria dignidade, à medida que o som da hipocrisia dos outros transforma-se em canto de salvação. Ele não é como os nobres: é baixo e vil de nascimento e condição, e sua vilania o torna vigoroso para reconhecer a nobreza de caráter, a única que deveria contar mas que jaz enterrada a sete palmos sob a terra. Sua nobreza de alma o põe em igualdade de condições – muito antes, o impõe como superior a toda aquela gente da casa De Rênal. Uma superioridade como essa lhe permite dispor assim daquelas criaturas a seu bel-prazer, em favor das estratégias de seu próprio exército. Mas na guerra, os imprevisto podem fazer sucumbir o mais brilhante general. 

E Julien faz sucumbir sua dignidade pelo amor. Quão belo não seria dispor a seu bel-prazer a fina e soberba dama da casa De Rênal? Como se estivesse movido por um desejo latente de se pôr em igualdade com o sr. De Rênal, Julien encontra na beleza da jovem esposa do prefeito o motivo perfeito para um primeiro estratagema de uma guerra iniciada, um estratagema que pode fazê-la tender a seu favor. Inicialmente relutante em ceder à sua presença, a sra. De Rênal vê-se pela insistência rendida aos avanços do jovem professor de seus filhos, que sob o mesmo teto lhe divide a casa e o coração. Os olhares e os toques de mão foram o mínimo necessário para fazer surgir uma paixão tão bela quanto aterradora, disposta a se fazer presente mesmo que vítima da amargura do pecado. A desconfiança ronda o novo casal. A amiga da sra. De Rênal se afasta, uma criada disposta ao matrimônio com Julien vê sua recusa com sofreguidão. As ida e vindas fazem o lusco-fusco da trama dos amantes, que a todo instante têm de lutar contra as dúvidas sobre o amor que nutrem um pelo outro e contra as situações que poderiam denunciar-lhes.  

A carta enviada ao sr. De Rênal precipita os amantes em uma nova luta: é preciso apagar os erros, fazê-los se esquecerem de uma paixão impossível. Julien, de malas prontas em direção ao seminário em Besançon, deixa sua musa imersa em desolação. A sra. De Rênal, durante os quatorze meses em que estivera dele afastada, alimentara a devoção e a condescendência em relação ao esposo e à fé como expurgo da culpa sentida. Galgando os patamares que a vida da fé lhe concedeu, Julien, de malas prontas agora para Paris, retorna ao castelo do prefeito para despedir-se de sua musa à madrugada. O último dia que passam juntos é regido pelo frescor da paixão e pelo remorso frente ao pecado a bater à porta novamente. Foi preciso que Sorel fugisse do quarto da amada, escapasse do castelo às pressas, ou seria descoberto e morto. A fuga do pecado nem sempre é o caminho desejável. A hipocrisia da sociedade se sustenta. Fugindo, Sorel jamais poderia ter alimentado o sentimento de ser superior a toda aquela gente rica que sempre o enojara. Julien parte em direção a Paris para se tornar um deles. Ele haveria de se enojar de si mesmo.

Parte 2

A segunda parte do romance inicia igualmente com uma fuga. Paris agora será a cena de um novo impulso para a guerra. A terra da hipocrisia, diz Sorel, é um campo de batalhas para o qual ainda não está devidamente preparado. Seu talento e sua bela aparência fazem por introduzi-lo à casa do Sr. De La Mole, a quem aos poucos torna-se uma referência de bons serviços e de confiança. Muito pouco confiáveis, porém, são aquela gente aristocrática, em muito diversa do que a província o havia feito ver. A amizade com o jovem Norbert é uma porta de entrada ao mundo que tanto admirara. Mas Sorel, uma alma romanesca, nada aprende melhor que pelo amor de uma mulher. E a graça da srta. De La Mole, aliada a um ar superior que aos poucos se torna em muito similar aos ideais de Julien, aproximam os dois naquela que será a maior das batalhas de amor. 

O amor como guerra talvez seja a metáfora perfeita dessa construção literária de Sthendal. Dispor das armas mais sutis para fazer avançar sobre o exército inimigo suas estratégias de desestabilização das bases, de ataque surpresa, fazem do jogo de amor entre Julien e a srta. De La Mole uma das mais interessantes elaborações psicológicas do que seja a dor de amor, sentida por quem é vítima já que algoz. Porque na arte de amar não há meio termo, não há como não sair agraciado e ferido. Embora haja sempre o que sucumbe, aquele que parece perder a batalha no momento, todos saem feridos. E a ferida aberta pela recusa inicial que a srta. De La Mole promove contra as investidas de Sorel lhe aumenta sem reparo o orgulho do general honrado que não vê na resistência do inimigo senão o motivo de ouro para mostrar o seu valor. E o valor de Julien não demorará a ser percebido por essa moça, já tão fragilizada pela hipocrisia dos salões que frequenta. A ausência de um homem capaz de dar à vida por sua mão irrita sua sensibilidade altiva. Muitos nobres, poucos seres superiores. E o destino não estaria lhe mostrando, pela superioridade honrosa de Sorel, que as castas não significam valor humano? Não é por demais evidente que a força do amor e da nobreza de caráter devem estar centradas na própria alma e não em grupos sociais? 

Para a sociedade, contudo, atos de nobreza podem não passar de pobres demonstrações de vilania. Os interesses são muitas vezes distintos. Dicotomia, é o que se lê em O vermelho e o negro. A cadência do amor de uma filha da nobreza por um simples camponês de província é sentida pelos pretendentes à mão da srta. De La Mole como uma afronta pela igualdade a reles mortais. Mas Julien, ainda que baixo de nascimento, é grande aos olhos da família e do sr. De La Mole, que o tem como a um braço direito. Sua memória fantástica o põe entre os donos do poder na França, uma fraternidade secreta que almeja restituir a soberania das aristocracias. Só não se dará em política a guerra encampada por Julien. A um romântico como ele interessa muito mais o amor, e os interesses em vencer resistências na mente da srta. De La Mole soa mais valorosa que quaisquer estratégias conspiratórias. A conspiração de amor, por isso, o assusta bem mais. Sorel se entende vítima do riso daqueles a quem tanto despreza quando seu objeto de desejo parece recusá-lo aos de sua estirpe, não sem unir o desprezo a situações de conversas paralelas em que ele ouvirá o seu nome. Alma e corpo se constrangem em ser alvos da pilhéria alheia, e nada há mais desonroso. Tomar a firme resolução de fazer evidente esse amor é frutificar a conquista mais difícil de sua vida. A conversa a propósito de Danton é a faísca que faz surgir o fogo iluminador da flecha de éros. 

E quais não são as belas coisas que se chega a saber por amor! A jovem donzela, encantada pela nobreza que parece ter avistado na alma de Sorel, impõe-lhe a imagem mais elevada de homem que é capaz de imaginar. Ensina-lhe como realmente funciona a vida parisiense, e como se chega a possuir a etiqueta com a qual se adentra salões e corações, porque é preciso que sua nobreza de alma seja reconhecida. Enquanto um general, porém, Julien não pode se prestar ao papel de deixar-se estabelecer como serviçal dos caprichos de tão bela dama. Isso porque ela, após uma noite inteira a gozarem dos prazeres secretos da paixão, se coloca a uma frieza assimétrica em termos do afeto com o qual havia recebido Sorel em sua cama. E como desvendar os mistérios do amor? A rejeição da srta. De La Mole desencadeia no jovem provinciano a paixão mais febril de que fora vítima. Em resoluta ofensiva, parte para o cortejo de outra nobre, ainda mais nobre que a srta. De La Mole, ainda mais firme e mais inacessível. Porque assim ensinava o experiente conhecido a quem reencontra durante uma missão em Strasburgo. Em uma verdadeira lição sobre o amor, o príncipe Korasoff lhe oferece o passo a passo para acessar o coração da jovem: feri-la ao cortejar outra dama. E que poder não teve a ferida, ao subverter os caprichos da bela srta. De La Mole à mais pura servidão voluntária ao seu homem de valor! Julien enfim vencera. O coração daquela bela moça de fibra seria completamente seu agora. 

Mas seu não era o futuro. Este, sempre regido pela fortuna do acaso que nos destina ao que retém de mais significativo para uma vida qualquer, escapou-lhe aos maiores sonhos. Além de sofrer por ter de ocultar tão grande amor, a srta. De La Mole, após tomar ciência de sua gravidez, dispõe-se a contar tudo o que acontecera ao pai. A fúria do sr. De La Mole, temida e ressentida por Julien, leva o filho de carpinteiro com ares de general ao profundo de sua revolta consigo. A conquista do mundo é quase sempre a perda da alma. Absorto em culpa e insegurança, vê-se sustentado unicamente pela firmeza da bela dama disposta à blasfema relação com um serviçal, a perder toda a sua nobreza de classe pela nobreza do amor. Sem muita saída, o sr. De La Mole cede aos apelos da filha em conceder uma pequena fortuna a Sorel a fim de lhe tornar um nobre e providenciar uma vida para ambos. A felicidade de Julien ao receber a nomeação de Tenente e se pôr no campo de batalha com uma pequena soma de amor e de dinheiro não poderia ser maior, como promessa à honra do filho que terá o seu nome. Dar-lhe um futuro tornou-se sua maior preocupação. 

A felicidade de conquistar o mundo, porém, durou muito pouco. O sr. De La Mole, disposto ainda a contradizer os apelos da filha, recebe em resposta a seu pedido uma carta com a letra da Sra. De Rênal, informando-o em tom acusatório o caráter terrível de Julien Sorel. A imagem de um aproveitador que seduz a mulher de destaque em uma casa para lhe extrair boas recompensas sobe à cabeça do sr. De La Mole e instaura o caos. Julien, retornando às pressas, despede-se melancolicamente da mãe de seu filho e parte para a igreja em que ele sabia encontrar seu antigo amor. Com dois tiros, encerra por trás toda a sua vida ao atentar contra a vida da sra. De Rênal. Esta não morre, mas Julien é condenado à morte. Antes, já com a certeza de que aquela morte seria o fim justo de uma vida como a sua, reencontra seu amor nos olhos da sra. De Rênal. Mesmo por toda a intervenção possível de sua parte e da parte da srta. De La Mole, Sorel mantém-se firme pela morte em seu discurso durante o julgamento. A sentença revolta as duas, comove as damas ali presentes, mas não demove Julien de seu posto. É-lhe gratidão em demasia ter a bela srta. De La Mole como esposa e mãe de seu filho; ter o perdão da mulher que amou primeiro e mais forte; ver que no fim o coração vale mais que a razão.  

A política, como sempre, acabou vencendo Julien e seu ideal. Porque a política é real, é a hipocrisia reinante na face de quem dá mais valor à posição social que aos apelos da alma. Decidido a deixar a vida, a ausência de um Deus não o abala. Ele que tinha em sua mente toda a Bíblia decorada, passou por ela incólume, porque sempre os homens desprezíveis que falavam por ela se faziam ouvir mais que a voz do próprio divino. Julien Sorel não havia percebido que a voz a que dera ouvidos, a voz do amor, era já a voz de Deus a lhe mostrar o caminho para superar a hipocrisia social e a baixeza moral dos tipos de todas as classes. O amor, que se pinta de vermelho, era a resposta à morte negra que os homens nos podem infligir. O vermelho e o negro é a tragédia de quem não foi capaz de ver o que fundamenta toda dicotomia. Ou que pelo menos teve de encarar a morte por amor para encontrá-lo. De ambos os casos, o livro de Sthendal é um perfeito exemplar.

Livro: edição Clássicos Globo (esgotada)

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