Dostoiévski - Crime e Castigo



As personagens em Dostoiévski são acometidas quase sempre pela loucura. A arma mais letal contra a normalidade cotidiana, a mesmice acachapante, um sentimento de inutilidade e um vazio existencial: a mente sã, vítima de sua própria lógica, aspira à loucura como pela emergência de uma salvação de si mesma. Rodion Românovitch Raskólnikov é mais um exemplo dessa artimanha da razão. O escritor russo teceu aqui, com toda a sua genialidade, os fios que cercam o homem vitimado pela sofreguidão de uma vida sem sentido. E não é mesmo o niilismo, já apontava Nietzsche e outros em sua esteira, o mal de nossa era? A farsa da razão e de sua promessa de paz e progresso recebe, em Dostoiévski, o traçado simbólico que o conduz ao seu oposto recíproco, e que não pode jamais ser mutilado como um dos polos da dialética da existência. A loucura de Raskólnikov é uma loucura possível a todo homem moderno.


Rodion Românovitch sofre essa tensão dialética a partir de uma persistência, anunciada na obra de Dostoiévski como uma doença da ideia única. Essa monomania, que estaria inflamando os neurônios de Raskólnikov desde a publicação que fez por um artigo sobre a sua concepção da humanidade como dividida entre homens superiores e inferiores, em que os primeiros, ao contrário dos últimos, não estariam presos às normas sociais, mas as julgavam e as violavam se fosse preciso, tornar-se-á em motivação fundamental para o crime que visa cometer. A velha usurária, a que não só ele mas muitos estão submetidos pela necessidade de empenhar seus bens em troca de dinheiro, não poderia ser melhor amostra de realização de seu pensamento, dessa ideia única - dessa doença da razão. O assassinato da velha, e por infeliz acaso também da jovem irmã que chega no momento de sua fuga, é realização de um ideal de superioridade.


O jovem criminoso, no entanto, não poderia prever de que modo sua natureza "superior" seria violentamente atacada pelo crime cometido. A doença da razão faz adoecer o corpo e a mente, de maneira que causa estranheza à polícia e aos mais próximos o seu súbito adoecimento. Aquele jovem relapso, é verdade, teria muitos motivos para adoecer. Seu ritmo de vida, isolado em um quarto de aluguel sem qualquer vínculo com a sociedade em que estava inserido, certamente levaria qualquer um a sofrer os agravos de seu estado de saúde. Mais que o corpo, porém, era a mente que estava adoecida. E os traços de loucura que começa a manifestar aos demais serve de sintomas para uma grave crise de consciência que abate o seu pensamento único. Não será uma crise moral pela morte da velha e da jovem moça, como seria de se esperar. É crise de ideal, porque seu ato, aparentemente revolucionário, não obteve o efeito esperado. O mundo não ficou melhor após aquelas duas mortes, e seu estado mental acompanhou de perto o crescente reconhecimento da inutilidade de um crime que lhe pôs à margem da humanidade.


A consciência deste seu crime está dotada de uma qualidade análoga à do conhecimento. Ródion era ali o único que sabia o que de fato ocorreu no apartamento da velha mulher. Conseguindo safar-se sem deixar rastros, a tormenta da culpa será sua única companhia. Seu jogo, à medida que se iam suspeitando de Raskólnikov, era provocá-los à vergonha por duvidarem de sua inocência, inflamá-los mesmo com uma postura ofensiva, sugestionando-se como culpado, oferecendo indícios para que, ao vê-lo tão enfaticamente acusando-se, desviassem suas suspeitas de um pobre e louco estudante. Rodion precisava, não demorou a perceber o amigo, de um médico, não de um juiz. Mas seu estado de saúde não se agravara senão pelo estranho fato de que era ele, naquele momento, o único que conhecia todos os elementos que compunham a cena da morte da velha e de sua irmã. Só ele de fato sabia. As suspeitas do comissariado de polícia ou do amigo Razumíkhin, provocadas pela estranheza de Raskólnikov, pelo seu gênio intempestivo e colérico, eram insights sobre o desconhecido. As provas e as justificativas estavam de posse de Rodion. Saber é ser capaz de oferecê-las a quem julga saber mas nada sabe.


Sem provas, porém, não faltarão justificativas ao juiz de instrução Porfiri Pietróvitch. Após a leitura do artigo de Raskólnikov, parecia-lhe fato banal que a doença e o interesse do jovem pelo caso da velha fossem indícios mais que sugestivos de seu envolvimento, e a apologia ao crime pelo homem "superior" que estava na base do artigo resolvia a falta de provas com uma razão bastante incomum: matar a velha era a demonstração de superioridade de quem estava subjugado a ela por meio das dívidas. Raskólnikov só não contava ter de assassinar a jovem irmã para escapar ao seu intento. Uma inocente fora a pedra de tropeço de sua ação calculada. Aquela jovem morreu sem razão, e não ter razão para matá-la pesou à alma de Rodion. A falta de razão inflama a loucura. E na loucura Porfiri encontrou o fio de razão que justificara o ato insano de um jovem estudante. Era loucura não ser ele o culpado. E razões não faltavam para que Raskólnikov enfim se entregasse. Não apenas pelo amor de sua mãe e irmã, que dele esperavam a honra da família, mas por Sônia. É com Sônia que sua culpa se transformará em salvação.


Para salvar-se de seu crime, daquele peso na consciência que acompanha toda ação cuja finalidade é vilipendiada pela mesquinhez e vilania, Sônia apresenta-lhe a confissão como o caminho. É bem verdade que fora o próprio Rodion quem entreviu na doçura e inocência de Sônia o caminho para sua confissão. Assumir seu erro só lhe foi possível a quem estivesse despida dos preconceitos que rondam a alma acusatória dos homens em sua maioria. Mas em Sônia havia esperança. Ela, a quem a sociedade acusava de jovem de vida leviana e promíscua, oferecia-lhe acolhimento. Havia escuta e retorno. É o perdão que segue a confissão. E pelo perdão se chega a constatação de que o erro, antes de justificar toda uma existência, é apenas um pequeno passo, por maior que ele seja, para o encontro com a verdadeira bondade que pode ser entrevista em nós mesmos, pela graça de Deus. Sônia, após ouvir a confissão de Raskólnikov, recita com ele a passagem do evangelho sobre a ressurreição de Lázaro. É como se pela graça e bondade divinas ambos desejassem obter o livramento da culpa que os perseguia. Os pecados da razão cedem à loucura caso não haja um meio de livrar-se da sua desrazão.


Com a confissão à polícia e à família, Raskólnikov sofre sua pena. O pecado cobra juros, tal como a usurária assassinada, implacavelmente. Mas o pecado tem de sucumbir à confissão. O erro confessado é a marca do reconhecimento da bondade não praticada e, portanto, em vista da qual se deve corrigir-se. Dostoiévski simboliza aqui a emergência da religião em sua função salvífica. Mais do que isso, entretanto, ele aponta para um compromisso dos homens em sua humanidade: de jamais ampliarem o sofrimento alheio pelo ato difamatório, de não servirem de instrumento para o pesar da alma do homem, ao contrário. Isso porque se há em todos nós a dimensão do erro e da culpa, que nos ajudemos mutuamente pela bondade a nos reerguermos, a nos salvarmos. É a bondade em nós que nos aproxima de Deus, que nos leva ao arrependimento e ao perdão. O amor a nascer ao final entre Sônia e Rodion tem a marca da bondade divina. E só o amor é capaz de salvar o homem de seus crimes.

Livro: edição Editora 34

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