Razão, intuição e literatura



Todos os que já assistiram a uma aula alguma vez conhecem aquela sensação de estar compreendendo bem o que é dito pelo professor, até chegar o momento em que temos de explicar o que foi compreendido: diante dessa tarefa, parecem quase sempre desaparecer as palavras e as ideias que poderiam ser usadas para explicá-lo, nos vemos meio perdidos e mesmo confusos, sem saber muito bem como explicar o que compreendemos nem porque nos parecera haver compreendido algo antes.

Por que isso nos acontece?

A dinâmica implicada aqui diz respeito a dois conceitos importantes em Filosofia: o de intuição e o de razão

Vejamos. 

Quando ouvimos a explicação de algum assunto, fazemos um esforço em compreender o sentido das palavras, das sentenças e dos argumentos utilizados pelo professor. Durante esse esforço, nossa mente exercita uma transição que segue das palavras até às coisas acerca das quais elas são ditas: quer dizer, ouvir uma aula sobre Napoleão, por exemplo, é seguir das palavras que sobre ele são ditas até a imagem que dele formamos em nós a partir do que nos é dito. São essas imagens que ao final configuram a nossa sensação de compreendermos um assunto, porque essa transição das palavras até o seu sentido é realizada pela intuição. A capacidade de intuir é semelhante a da visão, embora não seja com os olhos que vemos o sentido das coisas, mas com o intelecto. Exatamente por isso, dissemos que o sentido das palavras vão produzindo em nós imagens, não externas mas internas, que só podem ser vistas pela mente.

Pois bem, por que então sentimos dificuldades em explicar o que "vemos" pela intuição? Porque agora, no momento em que partimos para a explicação do que foi intuído, nos valemos de um outro aspecto da nossa mente, que é costumeiramente chamado de razão. Cabe a ela a tarefa de organizar os elementos que compõem algo, articulando-os de maneira a torná-lo inteligível a uma outra mente ou a nós mesmos. Mas perceba que, nesse momento, nosso esforço já não está mais restrito a uma postura por assim dizer passiva da mente, apenas recebendo e traduzindo as palavras do falante em sentidos e em imagens. O que nos cabe agora é operar ativamente em relação ao assunto abordado, de modo a poder nós mesmos produzirmos a intuição que já tivemos. Por esse motivo, a razão é uma tarefa ao mesmo tempo secundária e rememorativa: ela sempre depende de uma intuição prévia que lhe dá o fundamento.

Nossa dificuldade com o uso da razão está necessariamente relacionada com a linguagem - exatamente porque a linguagem é a exteriorização do raciocínio produzido pela mente. Para essa exteriorização, precisamos não apenas de uma língua ou um idioma, mas principalmente precisamos dominá-lo bem. São muitos os casos de dificuldade em explicar algo porque nos faltam as palavras certas, as melhores sentenças, os argumentos mais adequados. E essa capacidade só é desenvolvida em nós pela expressão mais bem acabada de uma língua - a literatura. É pelo contato com a literatura que a mente não apenas amplia sua gama de imagens e de intuições, mas sobretudo amplia seu léxico, o conjunto dos termos e das sentenças que nos permitem elaborar com precisão e com clareza o que compreendemos acerca das coisas.

E essa é apenas uma das vantagem da leitura de bons livros.


Foto: LIVRARIA DA VILA - Andre Rodrigues

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