Graciliano Ramos - Vidas Secas



Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é típico romance arquetípico, simbólico. Fabiano e sua família ressaltam a rusticidade miserável e bronca da pessoa humilde e sem posses, em contraste com os brancos, os ricos e o Governo, toda aquela gente que sabe falar, tem palavras difíceis, algumas belas, e que parecem enganar. A gente simples vive a contradição desse sentimento, ao admirar enraivecida o que não pode compreender. A vida na cidade tem promessas, é verdade, e o Governo não pode falhar, tido como perfeito. O erro deve ser mesmo desses homens que não são homens, mas são cabras. Animais nascidos para obedecer aos que sabem. Como a cadela Baleia obedece a Fabiano, confiando em sua governança. Homem que é cabra confia que a gente branca e do Governo deve saber o que faz. Mas confia desconfiando. Mostram-se, por isso, meio certos.


Dessa gente sem pretensões, a única vontade é sobreviver. Talvez alcançar uma cama melhor para dormir, o sonho de sinhá Vitória, mulher de Fabiano. Os dois filhos, o mais maço e o mais velho, inominados ao longo do livro, são meros coadjuvantes em uma luta para vencer a seca e a miséria. Menos que isso. Às vezes são empecilhos. Diferente da cadela Baleia, que salva a família na primeira cena, trazendo-lhes um preá entre os dentes, tornado banquete para uma família faminta. A fazenda que encontram pelo caminho, abandonada após a seca, vai servir-lhes como um pouso passageiro, repouso ao menos até a época das águas, ou até que o dono das terras retorne.


O dono retorna e, ao ouvir a ordem de retirar-se, Fabiano oferece seus serviços. Boa negociação. Tornado fazendeiro, descobre-se em nova dignidade de gente. De gente não, constata: de bicho. Não há que alimentar no peito desejos elevados demais. “Quem é de chão não se trepa”. Resignado, ao menos lhe sobra uns níqueis para a comida, também para a bebida e a jogatina. Bêbado, arruma confusão na cidade por causa de jogo. É preso por uma injustiça, ele sabe bem, porque o soldado amarelo é quem havido lhe provocado, Fabiano já com álcool nas ideias, não pôde controlar-se e xingou-lhe a mãe. Essa gente da cidade é sempre mais esperta, injusta, enganosa. O comerciante rouba-lhe, acredita Fabiano, nas medidas e nos preços dos alimentos. Desconfiado de todos, até do patrão e de suas palavras difíceis, dos juros e dos prazos, vê o dinheiro esvair-se por entre os dedos.


O dinheiro pouco, quase nada, torna impossível a cama de sinhá Vitória. Pôr as crianças na escola era preciso, mas a vida digna de fazendeiro aos poucos se tornava, aos olhos de Fabiano, como a de um negro sem alforria. Tinha-se naquela vida boiadeira uma vida de escravo, enganado por juros e falsas medidas, pela incapacidade de falar e acabar preso, uma injustiça – e também por não poder confiar aos filhos melhor futuro. As crianças eram talvez o motivo da esperança de Fabiano, esperança de que não sofressem com aquilo que tanto esmorecia e cansava os pais. Esperança de um futuro mais digno, um futuro de gente, não de bicho, não de cabra. Esse era outro sonho de sinhá Vitória. Só que esse precisava ser realizado, ou nada teria valido a pena.


Após o milagre de salvarem-se em meio à violenta seca das terras e dos céus, Fabiano e a mulher tomam a resolução de libertarem-se, alforriarem-se a si mesmos como antes, nômades porém donos de si. Seu caminho seria para o sul, atrás de terras mais férteis e cidades mais civilizadas, atrás de um futuro melhor, ao menos um presente menos seco. No caminho, a mulher questiona, quase filosofa: somos os mesmos, Fabiano? O marido pondera meia légua, não é de falar muito, faltam-lhe as palavras e as ideias, não é de pensar muito. Mas a pergunta é intrigante. Somos e não somos, é verdade. Não há como deixar de ser o que é, mas não é possível continuar a ser o que sempre fomos. Fabiano, a mulher e os filhos seguem o trajeto da vida seca, margeada pelos desejos de novidade e pelas certezas de sempre. São as contradições da vida.


Apenas a cadela Baleia ficou para trás, como parte daquele mundo molhado e regado a injustiças e enganos. Ao menos, a seca traz sua dignidade à gente que é cabra. Só os mais rijos prevalecem contra as intempéries da natureza. Baleia não conseguiu prevalecer. Envelhecida, teve o destino traçado pela espingarda de Fabiano. Sendo homem bronco, acreditou-a doente: era melhor dar-lhe fim. Não podia arriscar adoecer os filhos. Mas sofreu em dar o tiro. Todos sofreram. A cadela era parte da família, e Fabiano sentiu-se matando um dos seus. Já havia desejado matar o filho que fraquejara em meio à seca. Só os tempos molhados nos deixam com as ideias entorpecidas. E afinal Baleia era um animal, não era gente. Os filhos hão de se tornar gente. Sinhá Vitória tinha esperanças. Assim como a cadela esperava o lugar em que, viva, reencontraria sua família, e preás enormes, um verdadeiro paraíso.


Não há símbolo melhor para retratar nossa gente. Vidas Secas é um símbolo. E em Baleia, a riqueza trágica de nosso destino de bicho é eloquente. Somos sempre a cadela posta a confiar no dono – e a morrer por suas mãos logo venha a ideia de livrar-se da doença que pode afetar o futuro das famílias. Que famílias? Aquelas feitas de gente, não de cabras rudes e sem palavras. Mas as cabras têm sentimentos, ainda que incapazes de expressá-los. Graciliano Ramos expôs magistralmente os sentimentos de cabras e da cadela Baleia. A cena é realmente magistral. É o incômodo símbolo do que negamos ver, apenas porque talvez não encontremos as palavras adequadas para expressá-lo. Mas agora não há mais desculpas. A obra Vidas Secas expressou, para nós, aquele fundo inconfesso das cadelas e das gentes demasiado brasileiras.

Edição: Record

Comentários

Mais lidas