Flaubert - Madame Bovary

Eleven A.M., 1926 - Edward Hopper


Se existe um romance a ser lido como modelo do gênero, Madame Bovary certamente está entre os mais exemplares. De uma perfeição estrutural pouco vista antes, e quase definitivamente perdida em nossa época pós-moderna, a obra de Flaubert é daquelas pérolas que justificam a vida humana, quando o prazer com a leitura ainda resiste em nós, apesar de tudo colaborar para mortificá-lo. A quem vê morrer em si o apreço pela literatura, Bovary é daqueles remédios que nos aparecem como um beijo apaixonado, a fazer arder o corpo e a pulsar o coração por estar vivendo. A existência de Flaubert justificou-se em Bovary; justificamos a nossa lendo seu romance. O escritor mais ainda: não é possível tomar a arte da escrita a sério sem ter conhecido a tragédia desta amante avant la lettre.


Porque Bovary, a heroína de Flaubert, resume a essência da mulher amante em tempos modernos. Lançada por força do hábito social a um casamento medíocre, os livros são para esta esposa a justificativa do amor de que foi privada pelo marido medíocre, até que a fuga de tanta mediocridade esteja em viver aquelas paixões que elevam e alegram. A obra de Flaubert, denunciada em sua época como um manual de adultério para mulheres, é hoje mais que atual – porque vivemos já as muitas faces daquela denúncia submersa no romance: a denúncia da ilusão. É ilusão o que leva Bovary ao casamento, imaginando o amor que não teve; é ilusão o que a leva a aventurar-se às escuras em busca de amores externos, mas que acabam como um fogo sem brasas; é ilusão esconder de si mesma a terrível desilusão em que a vida nos lança sempre que acreditamos encontrar a solução. Não há solução para a desilusão na vida: e esta é a essência da tragédia de Bovary.


Alguém poderia dizer que nossa heroína, entregue às ilusões da paixão, sofreu a pena que nos cabe em vida. A vida, porém, ela não pôde suportar. Não depois que suas extravagâncias financeiras forjaram a ruína do patrimônio, seu e do marido. Sem que o pobre homem soubesse o que acontecia, sua casa estava em escombros. A crise com as finanças é elaborada por Flaubert como um símbolo da tragédia que toda ilusão anuncia. O patrimônio em ruínas torna-se o símbolo da ruína do matrimônio. Bovary há muito gastara seu empenho no amor pelos amantes, perdia seu tempo entre as fantasias e o desgosto anunciado, endividava-se com um tour de force renovado pelo prazer de escapar à realidade medíocre. Seu empenho é legítimo e louvável, e o romancista não esquece de mostrá-lo. Mas a luta contra a mediocridade sempre vem acompanhada de um preço.


A cota de sofrimento a ser paga é, para muitos, impossível de suportar. Bovary não suportou. É preciso dizer, porém, que seu marido também não. Ambos, no fundo, eram medíocres demais para entender a tragédia como essência da vida. E se a história se repete, uma vez será como tragédia, a outra como farsa. É mesmo risível constatar que ao final os dois Bovary não eram senão iguais. Mais risível, porém, é encontrar quem ainda dedique sua vida a tais ilusões. A lição de Flaubert reverbera ainda agora: a solução para a felicidade não reside nem no amor nem no prazer, nem no casamento nem no adultério, nem no dinheiro nem na sua falta. A vida não tem solução porque ela não é um problema. Fugir é tão enganoso quanto se entregar, sem pensar, ao sabor do acaso. A leitura de Madame Bovary é o meio pelo qual Flaubert nos convida a evitar o erro de sua heroína – heroína? O grande herói aqui, no fim das contas, foi o próprio escritor, ao superar as mediocridades de todas as épocas por meio de um romance exemplar. Superemos nossas mediocridades lendo Flaubert.


Edição: Nova Fronteira

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