Dostoiévski - Uma criatura dócil

Manhã, 1884 por Edvard Munch (1863-1944, Sweden)


Dócil é certamente um aspecto que foge à primeira vista da personagem que narra a história. O agiota enlouquecido pela visão da verdade sobre sua mulher não vê senão sua culpa, sua desgraça, sua mediocridade. Uma mediocridade, contudo, que se faz profundamente ciente, julgada pela consciência moral de alguém que se percebe a si mesmo, suas mazelas e suas qualidades, como um complexo conjunto de pulsações, como uma teia que lhe pervade o espírito a todo instante, seja calado, seja agindo. 


E de fato a docilidade da criatura, a mulher por quem se enamora, é bom que se diga, por comiseração e requintes de crueldade, é uma docilidade aos seus olhos. Muito pouco ficamos sabendo sobre o que de fato a jovem pensa, sobre si a vida ou o mundo. O pensamento aqui é conferido ao agiota, ao homem de penhor, que penhora inclusive sua felicidade tendo em vista obter algum lucro. Sórdido, como nós somos. Calculista. Racionalizar os sentimentos é algo que quase nunca dá certo, se se aplica todas as fichas na razão. É preciso arriscar, como num jogo. Sorte no amor é uma jogada de sorte. Há que ser agraciado pelo destino. 


Destino ou acaso – ambos encerram o momento fatídico para este homem, horrorizado por sua cegueira em não ver bem diante de si quanto havia de dócil em uma tal criatura! Mais do que poderia imaginar! E quase sempre pecamos de igual forma, pela ausência de perspectiva sobre a alma alheia, pela mesquinhez de todo o desejo mais imediato, a elucubração acerca da imagem que projetamos sobre o outro, acerca do que pode este pensar de nós... Um romance sobre o pensamento e a sensibilidade – eis a melhor definição que encontro para a experiência de ler esta obra de Dostoiévski. 


Um chamado ao complexo de nossos sentimentos, mais ainda dos pensamentos que nos assolam, porque inteiramente mesclados aos impulsos de sobrevivência e de vivência, entrecruzados com as mais inquietantes sensações realizadas e desejadas, mergulhados na solidão, na imensidão de nós mesmos, de que a linguagem não dá conta, que o olhar apenas sugere. Por isso o agiota, desesperado ao ver-se outra vez sozinho, retorna às lembranças para se explicar as razões de tamanha perdição. Seu amor jogou-se para a morte, ele que a encontrou tão frágil e dócil, ali lançada ao chão faz os papéis se inverterem. 


Eis que a criatura dócil produz a docilidade no homem de penhores, pois que a verdade da bondade da mulher lhe mostra sua miséria, sua necessidade de amar. A razão mal compreende o acaso, o destino que o fez, meros cinco minutos, não ser capaz de modificá-lo. Sua vida em nova solidão é uma afronta ao egoísmo até aqui alimentado. O convite da verdade que se revelou é o da bondade – aquilo mesmo pelo qual a então criatura dócil, ferida pela bondade despertada em seu homem, não pôde resistir a sua própria mesquinhez. A morte lhe foi um escapar de sua própria miséria. Eis a dialética da bondade: o bom revela o mau que não pode senão revelar o bem. Ou, nas palavras de Mefistófeles no Fausto de Goethe, naquela frase que o amor lhes revelou: “eu sou uma parte daquela força que quer o mal, mas cria o bem”.


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